Aposentadoria, crase e más intenções

Por Enio Squeff (publicado na “Folha de S. Paulo” – Música/crítica – em 19 de outubro de 1983)

 

ENCONTROS SINFÔNICOS DA PRIMAVERA – Teatro de Cultura Artística. Brahms: sexteto em Si bemol Maior, opus 18, 1º Movimento – (transcrição de H. Scherchen); concerto nº 1, em ré menor, op. 15, para piano; solita Jean Louis Steuermann; sinfonia nº 1, em dó menor, op. 68. Regente: Eleazar de Carvalho.

 

Caldeira Filho foi um grande crítico musical. Era assíduo frequentador de concertos, mas pouco antes de se aposentar me segredou que estava cansado de ouvir música. Não tanto pelos grandes concertos, claro. Sabia o que era bom; mas pela inexequibilidade da esperança dos que vão a certos espetáculos esperando quase sempre o menos bom e não encontram sequer o pior. Era uma opinião séria que me marcou. Lembrei-me de uma passagem da bíblia em que Cristo promete vomitar os que não são nem quentes, nem frios.

Falo de cátedra. Também sou assíduo aos concertos. Tenho comigo que instabilidade relativa do ar de São Paulo tem a ver com a instabilidade das orquestras de São Paulo. A Estadual chegou a me entusiasmar há alguns dias; a Municipal parece meio a Deus dará. Portanto, não é só decepção. Ambas sofrem da síndrome da instabilidade. Mas não sei se não apressariam a aposentadoria de um crítico do calibre do saudoso Caldeira Filho.

Da Municipal, por exemplo, pode-se dizer que não está péssima. Ouvi-a num ensaio de “Giselle”; fiquei com pena do maestro italiano. Quanto à Estadual, escutei-a esta semana com o pianista Jean Louis Steuermann. Não tive pena do maestro que ele não precisa disso. Mas cheguei a sonhar com a possibilidade da minha aposentadoria.

Na sinfornia nº 1, de Brahms, o conjunto saiu-se bem em comparação com o concerto. As cordas quase não desafinaram; as trompas crefaram pouco, o primeiro clarinete – quase inaudível – afinou razoavelmente e o primeiro oboé e o tímpano, para a felicidade dos ouvidos menos moucos, continuaram soando bonito como na primeira parte. Mas no concerto lembrei-me da frase daquele gramático que dizia que a crase não tinha sido criada para humilhar as pessoas. É verdade e, por extensão, pode-se dizer que Brahms também não escreveu trêmolos para o sol agudo dos violinos ou trinados para os violoncelos para humilhar os instrumentistas; ou que o desenho que aparece nas trompas a partir do compasso 193 do primeiro movimento, Brahms o tenha escrito para testar trompistas. Verdade que era um concerto para piano e orquestra e que o sr. Jean Louis Steuermann tocou quase todas as notas. Teria de acrescentar em favor da justiça que o pianista não tinha por obrigação tocar bem se quase ninguém estava muito interessado no assunto. Logo, é fácil concluir sobre sua atuação. Mas o público gostou muito; aplaudiu de pé. Pelo que sei dos músicos e do titular da Osesp, eu também o faria. Mas pelo que ouvi não pude deixar de pensar na sugestão de aposentadoria do saudoso Caldeira Filho.