Brahms, um modelo de ambiguidades

Por Enio Squeff (publicado na “Folha de S. Paulo”, Música/crítica, em 20 de agosto de 1983)

 

FESTIVAL BRAHMS: Teatro Municipal. Programa: “Rapsódia para Contralto, Coro Masculino e Orquestra” e “Um Réquiem Alemão”. Solistas: Vânia Soares, Carlos Vial e Adélia Issa. Orquestra e Coro do Municipal. Regente: Oswaldo Colarusso.

Faz 100 anos que Brahms morreu. Deve ter sido uma figura estranha. Para os biógrafos, este típico representante da classe média alemã de sua época foi, em quase tudo, um homem ambivalente. Como pequeno burguês, nunca escondeu seu desprezo para com os colegas mais intelectualizados, como Liszt e Wagner. Assim também a sua misoginia; sabe-se que evitou mulheres castas. Conviveu com prostitutas.
São questões que talvez não se expliquem apenas em função dos dados biográficos. A grande música de Brahms é mais que outra coisa essa tensão permanente entre a forma rígida de um protestante que imaginava ter motivos para não se entregar a desregramentos e o perfil de um romântico. Brahms nunca deixou de ser isso na sua música. Em suma: não há necessidade de que os intérpretes saibam da vida de Brahms e das interpretações que a partir daí se podem fazer de sua obra. Ou seja, não sei se o jovem Oswaldo Colarusso sabe ou se interessa por tais fatos. Dos músicos se exige que interpretem bem uma partitura; o resto são acréscimos. Ocorre que se Brahms foi muito complicado, sua música não deixa de sê-lo sob todos os aspectos. No uso de quiálteras (sextinas, quintinas, tercinas) Brahms parecia querer mudar de unidades rítmicas a cada compasso. Mas pelo intrincado de sua polifonia e esta “instabilidade” rítmica ele demonstra, paradoxalmente, a outra feição do mundo instável que se encontra um ser aparente antípoda, Wagner. Acho que é isso que se deve discutir a propósito do trabalho do maestro Colarusso.
Faço uma primeira constatação: o maestro, a orquestra, solista e coro se prepararam para a difícil tarefa que Brahms lhes propunha. A sra. Vânia Soares nem sempre se desprendeu da partitura e nem sempre se elevou à orquestra; o sr. Carlos Vial tem uma voz potente, mas exagera nos vibratos; e a sra. Adélia Issa é extraordinariamente afinada, mas talvez devesse ter uma voz mais próxima do dramático que Brahms exigiu para o “Réquiem”. São observações marginais que não podem ignorar o bom trabalho executado. Aliás, se as “panelinhas” estaduais e municipais concedessem um pouco, estes três já deveriam ter seus lugares nos elencos das óperas de São Paulo. Logo, inútil acrescentar que maestro Colarusso foi bem auxiliado. Mas atuou bem?
Com exceção dos contrabaixos, da afinação por vezes baixa dos tenores do coro e do contrafagote, o resto funcionou a contento. Quanto ao sr. Colarusso, regeu o “Réquiem” de cor, numa demonstração de virtuosismo, rara num jovem em início de carreira. Ou seja, tecnicamente foi um concerto quase sem problemas. Mas Brahms foi muito mais do que suas quiálteras, a polifonia e a orquestração. E não saberia dizer se essa dramaticidade esteve por inteiro na correta interpretação de Colarusso. São questões que coloco na amplitude da tarefa almejada. E com a concessão de que um possível mal-estar concorre para que os críticos também caiam nas ambiguidades de que Brahms foi um paradigma inexcedível.