Coerência e progresso no trabalho de criação

Por Enio Squeff (publicado na “Folha de S. Paulo” – Música/crítica, em 25 de maio de 1983)

 

ANIVERSÁRIO DA SINFÔNICA ESTADUAL – Dia 23, às 21 horas, no Teatro de Cultura Artística, Programa: Recital de Canto de Câmara – a Modinha Brasileira; Eliane Sampaio, soprano; Gilberto Tinetti, piano; Sinfônica do Estado de São Paulo: “Convergências”, para orquestra, opus 28; “In Memoriam”, para orquestra, opus 39; “Desafio” para piano e orquestra de cordas, opus 31, de Marlos Nobre. Solista: Maria Luiza Corker; regente: Marlos Nobre.

Não sei se o exercício da coerência tem alguma coisa a ver com música. Em política, por exemplo, isso quase não conta. Há dias o senador Roberto Campos declarou alto e bom som para a “Folha” que era a favor de uma “moratória negociada”. Não era o que o senador dizia há alguns meses. Ou seja, em política parece que a realidade sempre se impõe. Já na música é mais difícil mas acontece. Há anos, por exemplo, o compositor Marlos Nobre chegou a acenar para a música atonal. Hoje já não é mais assim.
Tudo bem, tais comparações não são apropriadas. O sr. Marlos Nobre não deve coerência a ninguém, a não ser a seu próprio mundo. Já um senador deve coerência ao que julga certo para o povo. Lembrei o caso, porém, porque na segunda-feira ouvi uma das últimas produções do compositor Marlos Nobre, “Desafio 7”, para piano e orquestra de cordas. A obra foi dada em primeira audição mundial com a pianista Maria Luiza Coker, por ocasião do 10º aniversário da Sinfônica Estadual. Não foi a única peça do programa. Juntamente com o citado “Desafio”, o autor regeu a Osesp nas obras “Convergências” e “In Memoriam”. Não sei se houve a intenção de mostrar uma possível evolução dentro do pensamento musical do autor, mas, se aconteceu, fico na dúvida entre o significado de progresso e retrocesso.
Tomemos o conceito de progresso. Sei que existe todo um movimento mundial em favor do “retorno” (?) a tonalidade. O lobby é justificável. São poucos os que vão a concertos. No ambiente saturado dos vanguardistas a coisa parece ter chegado ao esgotamento: há muito de uma certa recusa de fazer música por parte de alguns elementos da chamada vanguarda. Não é o que acontece com todo o mundo e o sr. Marlos Nobre se conta entre estes. Mas houve uma inversão do programa perpetrada pelo próprio compositor. “Desafio 7” constava da última parte do concerto; no entanto, entrou para o início. Se alguém dissesse que foi uma das primeiras obras da produção do compositor, estaria errado quanto à cronologia de sua criação; não estaria errado quanto ao seu espírito. “Desafio 7” é mais nacionalista quanto tudo o que os jovens nacionalistas de 30 anos atrás fariam. Alguém lembrou o exótico adocicado de Heckel Tavares, com algumas pitadas bartokianas. Não é um exagero e esta talvez seja a questão.
Se temos um indício de que daqui para frente vamos voltar ao Dó Maior, só o tempo dirá. Mas há um ano o sr. Marlos Nobre criticou aqui na “Folha” a Neue Music e há algum tempo vem recebendo encomendas. Certamente está atendendo a uma demanda. Posso não concordar, portanto. Pelo direito que tenho de achar que determinados compositores enveredam por caminhos errados (de volta), nem por isso devo deixar de concordar que têm público. E encomendas. É o caso em questão. Fica, por tudo isso, o registro da dúvida: em política econômica, incoerência pode ser evolução; em música, pode ser o contrário.

Um concerto dedicado à cantata
O Concerto do Meio-Dia de hoje no Masp será dedicado à cantata, considerada uma das grandes formas de música ocidental. Com as vozes de Luiz Tenaglia e Lenice Priolli, apresentará principalmente composições do período barroco. A série é patrocinada pelo Banco Francês e Brasileiro e organizada pelo Mozarteum.
Do concerto, com início marcado para 12h30, constam obras de Beethoven, Prokofiev, Scarlatti, Henricus Albicastro, Bach, Rameau e Purcell, além daqueles já citados. Compõem o conjunto, ao lado de Tenaglia e Lenice, Bernardo Toledo Piza, Abel dos Santos Varga (flautas), Elizabeth Del Grande (percussão), Kim Diane Kook (violoncelo) e Maria José Carrasqueira (cravo e piano).