Dom Pedro, homem de sete instrumentos

Por Enio Squeff (publicado na “Folha de S. Paulo”, em 09 de setembro de 1983)

 

Sobre Dom Pedro I, sabe-se que foi mulherendo e que ao morrer em Portugal aos 42 anos, contava como sendo de sua “autoria” a independência do Brasil e a revolução que acabou com o absolutismo português. Talvez pelo vezo de auto-achincalhe, nós brasileiros, não o vejamos como um estadista. Mas Dom Pedro o foi. Os conservadores, não raro, defendem o talento individual para venderem imitações baratas de Dom Pedro. Desprezá-lo, portanto, parece uma defesa inconsciente dos progressistas. Porém Dom Pedro foi talentoso até como músico. Está aí um fato que os monarquistas e quejandos geralmente ignoram.
Melhor para Dom Pedro, sem dúvida. O Sete de Setembro parece remeter para uma revisão à medida que a Independência perde o romantismo do Grito; hoje já nos sabemos presos aos nossos credores e não adianta berrar. Logo, para a memória de Dom Pedro I, talvez bastasse ressaltar seu papel no Grito.
Mas e o músico? Afirma Vasco Mariz na sua “História da Música no Brasil” que Dom Pedro, além do “Hino da Independência” que quase todos cantam no Sete de Setembro, foi autor de muitas outras obras. Nomeadamente: uma sinfonia, uma abertura, um Te Deum, uma Missa, um Credo “Variações sobre uma ária de dança popular (Miudinho)”, além do “Hino da Carta” que até 1910, quando caiu a monarquia, era o Hino Nacional português. Sabe-se, por outro lado, que Dom Pedro era instrumentista. E também aqui parece ter tido um talento fora do comum. Ao que consta, executava clarineta, trombone, fagote, flauta, viola e violoncelo.
A suposição de que tivesse sido auxiliado por seus professores (José Maurício, Marcos Portugal e Sigismund Neukomm) para compor as obras que lhe são atribuídas, esbarram exatamente em seu talento como instrumentista. Mesmo que não fosse um virtuose, teria sido, no mínimo, um orquestrador razoável. O austríaco Neukomm, seu professor de harmonia e contraponto, foi discípulo de Haydn. Marcos Portugal e o brasileiro José Maurício foram compositores muito considerados. Restaria, enfim, o testemunho da princesa Leopoldina, sua primeira mulher. Numa carta a seu pai, o imperador Francisco I, da Austria, ela escreveu: “O meu marido é compositor também; faz-vos presente de uma sinfonia e de um Te Deum compostos por ele. Na verdade, são um pouco teatrais, o que é culpa do seu professor, mas o que vos posso assegurar é que ele próprio os compôs, sem auxílio de ninguém” (Vasco Mariz). A opinião crítica de Dona Leopoldina, que era pianista, já punha em relevo a reação europeia contra os excessos dos italianos e do bel canto, moda que no Brasil ainda vigorava, mas que na Áustria do operismo reformado de Gluck, já era desconsiderada. Seja como for, dois fatos parecem ressaltar disso tudo: o primeiro é sobre o destino dos presentes “de Dom Pedro ao imperador Francisco I, da Áustria.” Não sei se algum musicólogo brasileiro se deu ao trabalho de tentar resgatar tais obras de algum lugar da Europa, se é que ainda existem. A segunda, refere-se, evidentemente, ao valor das músicas.
Pode-se admitir que não tenham grande importância. Mas Dom Pedro, apesar de príncipe, descendia de uma família de diletantes quase fanáticos. Os Braganças gostavam de música muito mais do que se poderia supor em cabeças coroadas. O musicólogo Adolfo Salazar considerava a biblioteca musical de Dona Bárbara, princesa portuguesa descendente dos Braganças que casou com Fernando VI, da Espanha, uma das maiores preciosidades musicais da Europa setecentista. Não sei se se referia à parte do acervo que pertencera a Dom João IV, de Portugal, e que, afinal, acabou destruída no terremoto que arrasou Lisboa no século 18.
É possível que a Princesa tivesse levado muitas partituras para a Espanha por ocasião do seu casamento. Seu professor foi Domenico Scarlatti, o grande compositor de “sonatas” para cravo, um dos maiores nomes da música barroca. Ela própria parece ter sido uma musicista excepcionalmente dotada e que movimentou a vida musical espanhola como rainha da Espanha. Dom Pedro I, tinha, pois, a quem sair. Mas assim como a história da música brasileira (?) o esqueceu, ele mesmo, só em raras ocasiões se lembrou da música e dos músicos. Na época da Independência compôs para cantar as glórias do Brasil e do seu ato, durante a revolução que depôs Dom Miguel e instituiu a monarquia constitucionalista em Portugal, para comemorar a manutenção da Coroa e do Parlamento. Era um compositor bissexto e que, por outro lado, deu muito pouco aos músicos da sua Corte no Brasil.
Indeferiu o pedido de pensão do Padre José Maurício, já velho e que morreria na miséria no Rio, depois de décadas de dedicação à Corte; e fez o mesmo com Marcos Portugal que também faleceu no Rio de Janeiro, nas mesmas condições que o músico brasileiro. Por quê?
Difícil uma só resposta. Para alguns historiadores, Dom Pedro foi apenas pragmático. Entre arruinar o País, mantendo uma vida musical faustosa e saldar as dívidas do Brasil, ele teria optado pela austeridade. Não se tem os números dos custos da orquestra da Corte Imperial brasileira. Parece ridículo sustentar, porém, que as pensões ao padre José Maurício ou a Marcos Portugal pudessem interferir nas finanças do Império ou na dívida externa que o Brasil tinha contraído com a Inglaterra. A questão pode ter sido por desleixo mesmo: o responsável pelo Sete de Setembro foi um “homem de sete instrumentos” também por seu caráter inconstante. Mas se deve admitir que era quase um gênio. Pena que essa feição multifacetada do seu talento seja um pouco o paradigma de todos os brasileiros. Há quem sustente que a síndrome de pretensão de sermos talentosos e que Deus, portanto, é brasileiro seja uma invenção a partir do modelo de Dom Pedro. É uma bobagem; mas a música do Sete de Setembro poderia ser também a memória do passado. O Grito não seria apenas paradas militares, mas também a inspiração de um sonho que muitos acham ter terminado. E haveria sempre o consolo de sabermos que por termos governantes que não gostam de música, já fomos governados por gente que não apenas gostava, mas até fazia música.
Seria um sonho; como a independência – mas bem melhor do que nada.