Melhor elenco é o europeu

Por Enio Squeff (publicado na “Folha de S. Paulo” em 5 de dezembro de 1982)

 

Dos elencos que atuam em “Wozzeck”, de Alban Berg, o que se apresenta hoje parece indiscutivelmente o melhor. Faço a observação pelos ensaios que assisti: Adalbert Wahler (Wozzeck) é um grande ator, Hans Nowack (Doutor) e David Palmer (Capitão) idem, idem. Se acrescentarmos que Gerlinde Lorenz (Marie) é também uma grande cantora (como os outros, aliás), tem-se algumas definições.

Mas no elenco nacional provavelmente sobrarão algumas surpresas: Graciela Arayo Altamirano (Marie) é sempre uma cantora convincente. O barítono brasileiro Carmo Barbosa surpreende, assim como Ayrton Nobre (Tambor Maior). São impressões tiradas de alguns ensaios, como disse, o que não significa muito. “Wozzeck” não se faz de primadorismos: através da estrutura intrincada e quase sempre atonal da ópera, é possível perceber o enorme trabalho que se colocou principalmente aos cantores. Só que o que mobilizou os maiores recursos foi a orquestra. Ao cabo de algumas dezenas de ensaios, o maestro Issac Karabtchevsky me garantiu ter conseguido seu grande objetivo, no qual a orquestra é a parte mais importante.

Este talvez o melhor deste espetáculo que começa sua curta temporada hoje à noite. Acompanhei através de conversas com amigos músicos as dificuldades da partitura de “Wozzeck”. Não exageraria quem pensasse numa espécie de labirinto. Na verdade, cada compasso desta ópera é um desafio, com seus ritmos complexos e as dificuldades de articulação, que praticamente não oferecem apoio tonal algum. Sem uma leitura musical muito boa não há instrumentista que supere os problemas que se lhe colocam; mas sem um regente capaz, é impossível tentar montar “Wozzeck”.

O outro item importante. Quando o maestro Karabtchevsky anunciou sua intenção de ensaiar “Wozzeck”, ouvi de muitos músicos ditos de vanguarda risos de mofa: era um sonho irrealizável. Na medida, porém, em que os ensaios iam evoluindo, ao desprezo seguiu-se o desdém: tive de escutar de um maestro – entusiasta da música contemporânea – que fazer “Wozzeck” não constituía nenhum milagre; o difícil era fazer Verdi…

Besteira à parte, porém, é exatamente a questão que se coloca aos que querem o maestro Isaac Karabtchevsky fora do Municipal. Mesmo aos músicos de esquerda, com “Wozzeck” ele se impôs de forma categórica. Está com a partitura de cor e conseguiu dos músicos um trabalho que lhes valerá para Beethoven.

 

Algumas visões de Wozzeck

Otto Maria Carpeaux (escritor, crítico literário já falecido): “… a primeira tragédia de um proletário, na literatura europeia moderna, peça cheia de acusação, sátira e piedade infinita, no estilo de uma balada popular dramatizada, vivificada pelo frisson de superstições inspiradas no povo pelas forças demoníacas da natureza; símbolo das forças demoníacas da estrutura social que o homem simples e humilhado não chega a compreender.”

Rugero Jacobbi (diretor italiano que montou “Wozzeck” no Brasil pela primeira vez): “O espetáculo foi excelente. Ziembinski resolveu o problema das mudanças de cenário com habilidade de simplicidade. Alguns atores (Maria Della Costa, Samborski, Josef Guerreiro) estavam extraordinários. Mas o texto, em sua aspereza, em sua falta de estrutura aparente, em sua pureza sem concessões, ficou inatingível, obscuro para o grande público. Muita crítica demonstrou a incompreensão mais absoluta. Somente Pompeu de Souza escreveu uma ‘louvação’, que é uma de suas páginas mais vivas. Isto foi em setembro de 1948. Estamos ficando velhos; ‘Wozzeck’ continua jovem, continua a ser “um caso aberto”.”

Dominique Jameaux (autora do livro “Berg”): “E é assim que deste manuscrito genial e incômodo, onde o expressionismo dá seus primeiros passos com um século de antecedência, neste telescópio violento de imagens, vindas diretamente do inconsciente, e que parece mesmo antecipar as vias de um ‘teatro da crueldade’ como o de Artaud, Berg fez um livro que ‘classicisava’ o drama em uma trajetória lógica: exposição-peripécia-resolução, ligada a certas asperezas, mas confiando em devolver a música o cuidado de reintroduzir a violência dos afetos, na implacável sucessão de duas mortes rituais”.

Ziembinski (diretor da primeira montagem nacional de “Wozzeck”): “A inaceitação do público, por mais estranho que pareça, não me espantou. Talvez nem me tenha doído, embora sempre nos doa o fracasso daquilo a que mais nos dedicamos. Possivelmente o poder concentrado de Wozzeck, a sua redução humana, o seu extrato era tão seco, tão artisticamente categorizado, que provocava uma terrível contração e reação no sentimentalmente e humanamente dissolvido mundo moderno”.

Alban Berg “Existe uma parte minha nesta característica “militar” de Wozzeck, na medida que passei este ano de guerra totalmente dependente de pessoas que odeio, cativo, doente, resignado: humilhado, de fato”.