Na dura trilha dos sertões

Por Enio Squeff (publicado na “Folha de S. Paulo”, em 18 de setembro de 1983)

 

EUCLIDES: A ESPADA E A LETRA, de Franklin de Oliveira. Paz e Terra. 144 págs. Cr$ 2.200.

Há um mistério quase que intransponível em “Os Sertões”, de Euclides da Cunha: o gênero a que teoricamente pertenceria o livro. Aparentemente, a discussão é acadêmica: pelo gênero, definiríamos o logos da obra e esta é uma das questões que Franklin de Oliveira propõe em seu mais recente ensaio “Euclides, a Espada e a Letra”. Não é uma questão atraente. Ocorre que o jornalista Franklin de Oliveira é um erudito com os pés na terra (por isso, inclusive, é um grande jornalista); seu ensaio projeta Euclides da Cunha numa série de questões contemporâneas. Não é, portanto, mais um ensaio sobre o autor de “Os Sertões”.
Alguns aspectos que Franklin de Oliveira discute são evidentemente polêmicos. A gênese que faz dos gêneros literários para concluir sobre a sua permanência no tempo e no espaço permite algumas questões sobre a própria de historicidade do homem. E Franklin de Oliveira não é homem de lidar com categorias eternas. Mas este, por sinal, é também o maior valor do livro: a insistência com que seu autor busca na discussão sobre o escritor Euclides da Cunha, sua relação com seu tempo e com o Brasil contemporâneo. Em sua análise Franklin de Oliveira não estaca num só aspecto.
Ao discutir “Os Sertões” como obra científica, ele coloca o que já se conhece. As falhas de Euclides são o seu positivismo. Mas ao discutir as teorias comtianas, Franklin de Oliveira faz uma das mais completas e profundas análises de sua práxis na política brasileira, da República Velha aos dias de hoje. É interessante acompanhar, por exemplo, a trajetória do positivismo no Sul, a justificar o caudilhismo de Julio de Castilho; a sua extensão a Floriano Peixoto e a sua relação, enfim, com o general Moreira César, morto pelos jagunços e que é dos poucos que a história do Brasil relegou ao seu devido lugar, graças a Euclides da Cunha. Para Franklin de Oliveira, a absolvição da história ou a tolerância de cumplicidade com que se trata o positivismo, é apenas uma das nossas esparrelas históricas. As mesmas que fazem da História do Brasil um mar de rosas, uma espécie de crime sem culpados. E é aqui que entra Euclides da Cunha. Mas não como cúmplice, senão como um iludido. Pois há uma dimensão em Euclides que Franklin de Oliveira faz questão de acentuar: sua imensa coragem, seu espírito de justiça, acima das contingências históricas que amoitariam qualquer outro, mas que em Euclides da Cunha foi apenas uma razão a mais para que ele denunciasse, ou mesmo se autocriticasse.
Com tudo isso, o que fica de “Euclides, a Espada e a Letra” é um ensaio importante para o Brasil atual. Na medida em que discute Euclides da Cunha como contestador do seu mundo (Franklin de Oliveira defende a tese do caráter revolucionário da obra de arte) as sombras sobre o Brasil atual vão-se adensando. Sobre este aspecto, há um capítulo interessante no livro: é quando Franklin de Oliveira começa a falar sobre a Amazônia a propósito dos ensaios de Euclides da Cunha. Lá pelas tantas, o ensaísta informa que “O vale do Ipitinga anuncia-se como um novo Carajás”. É uma notícia correta: casualmente, no dia em que li esta observação, vi por uma estação de TV que Ipitinga é mesmo uma das regiões mais ricas do mundo. Como a informação provinha de uma autoridade do Ministério do Interior, sem querer, me ocorreu que Franklin de Oliveira ao escrever seu ensaio retomava não apenas o tema, mas parte da tragédia dos intelectuais lúcidos que querem o brasileiro para os brasileiros. Em seu ensaio, Franklin de Oliveira insiste sobre os temas da miséria que foram, afinal, os mesmos da denúncia de “Os Sertões”. Poderia ter acrescentado que o medo dos militares de que os jagunços fossem agentes de uma nação estrangeira, como se dizia nos quartéis da época, era e continua sendo a síndrome de um país dominado, onde, não raro, o povo é o inimigo e as forças de dominação, exatamente o que deve ser defendido e em nome da “defesa da Pátria”. Franklin do Oliveira, que foi cassado por 64, sabe o que isso quer dizer.