Os instrumentistas e o corpo

Por Enio Squeff (publicado na “Folha de S. Paulo”, Música/crítica, em 18 de agosto de 1983)

 

ENCONTROS: Teatro de Cultura Inglesa. Programa: Obras de Purcell, Beethoven, Camargo Guarnieri e Pablo Sarasate. Solistas: Elisa Fukuda (violino) e Achile Picchi (piano).

Entreouvi há dias uma conversa entre o maestro Eleazar de Carvalho e a pianista Magdalena Tagliaferro. Falavam sobre a preparação do instrumentista. A pianista estava dando um depoimento sobre a necessidade que sempre sentiu em se equipar fisicamente, quando o maestro contou a história de certo solista que lhe confessou ter chegado ao fim de um concerto quase em estafa absoluta. Não acrescentaram que muitos instrumentistas podem se perder pelo cansaço. Não precisavam.
Mas o problema é sério. Na semana passada a violinista Elisa Fukuda e o pianista Achile Picchi deram um recital na Cultura Inglesa. Foi um belo espetáculo; na primeira parte o duo executou obras relativamente fáceis sob o ponto de vista técnico. No segundo, entretanto, a violinista executou duas obras de virtuosidade, vale dizer, que exigem um esforço físico quase desmedido: a sonata solo de J. S. Bach e a fantasia sobre a “Carmen” do violinista espanhol Pablo Sarasate. Na sonata, há uma fuga a três vozes que exige quase o que um violinista pode dar num instrumento que, a rigor, não é polifônico; na segunda, é difícil cair perante os harmônicos, as notas duplas, triplas e até destacadas. Nem tudo saiu perfeito; mas até bem pouco a violinista Elisa Fukuda era uma instrumentista de musicalidade superior; agora já está se aproximando do virtuosismo transcendental.
Ora, nada disso é possível sem uma preparação física. Na verdade, ninguém nasceu para tocar instrumentos musicais. Não existem flautistas que não tenham a boca mais ou menos deformada, ou clarinetistas que não ostentem um mínimo de calosidade no polegar direito.
Com tudo isso, o que ficou, principalmente na execução de Elisa Fukuda, foi o seu excepcional preparo físico. Na observação que fez sobre os instrumentistas, o maestro Eleazar de Carvalho acrescentou ser em tudo necessário seguir de perto as lições dos atletas; ao que a pianista Magdalena Tagliaferro acrescentou nunca se ter permitido extravagâncias. São regras que, evidentemente, não servem para todos e para todas as ocasiões. Cada caso é um caso: quando perguntei à sra. Elisa Fukuda se fazia muita ginástica, respondeu-me que mal tinha tempo para um relaxamento muscular. Conheço gente jovem que toca muito bem e que nem isso faz. Mas não consigo deixar de concordar com a pianista Magdalena Tagliaferro de que o músico instrumentista, mais que o comum dos mortais, como os atletas, os bailarinos e os trabalhadores braçais dependem de seus corpos, com tudo o que isso possa significar para o conforto e para a abstenção de muito que faz a alegria de viver.