Rameau e a cultura da cidade

Por Enio Squeff (publicado na “Folha de S. Paulo” – Música/Crítica, em 29 de setembro de 1983)

Sociedade de Cultura Artística – Integral de Jean Philippe Rameau para tecla. Pianista José Eduardo Martins. Teatro de Cultura Artística.

Talvez seja possível discutir a música pela sua utilidade. Contou-me um estudante de música que foi esta a questão que o impediu de ganhar uma bolsa de estudos da Fundação de Amparo à Pesquisa. O professor que o atendeu aconselhou-o a procurar profissão mais produtiva. Não sei se toda a Fundação pensa como o citado professor; se for assim, porém, imagino que instituições culturais do tipo tenham pessoas como o pianista José Eduardo Martins na conta de perfeitos nefelibatas (com o perdão da palavra).
A cada compositor que aborda, José Eduardo Martins faz uma espécie de inventário absoluto. Nem todos têm muita a ver com o que o público de concertos conhece ou aprecia. Foi o caso de Scriabin e, sob certo aspecto, da obra de Henrique Oswald. No ano passado José Eduardo Martins publicou um livro sobre a obra pianística de Debussy, resultado do estudo da obra pianística do compositor francês. Neste ano, também como fruto de uma pesquisa exaustiva, o pianista decorou a obra completa para teclado do compositor francês Jean Philippe Rameau. Apresentou-a esta semana pela Sociedade de Cultura Artística. Pouca gente conhece Rameau e o Cultura Artística não estava lotado. Mas foi um grande concerto, sem deixar de ser um grande acontecimento cultural.
Claro, até para professores universitários, esta é uma questão discutível. Coincidentemente, os revolucionários de 1789 também encararam Rameau como uma espécie de resíduo inútil da aristocracia de quem o compositor foi empregado. A rigor, portanto, a questão tem até pertinência histórica. Rameau foi recuperado pelo Ocidente. Suas três dezenas de óperas quase não são conhecidas. Suas teorias, porém, avançaram para além de tudo o que fizeram Grétry ou Gossec, dois nomes que fizeram fama na revolução, mas que a história deixou irremediavelmente em segundo plano. Sob muitos aspectos, José Eduardo Martins e seu empenho cultural são discutíveis, mas como humanista, sua contribuição é inestimável. A Cultura Artística deu, esta semana, uma contribuição à cultura brasileira.
Aliás e a propósito, deveria por isso falar também da interpretação do pianista. Sinceramente, criticaria um ou outro problema de tempo na execução dos ornamentos que devem ser difíceis de serem corretamente tocados ao piano (Rameau escreveu para cravo). Mas são pormenores. O fundamental é que a cultura de São Paulo está mais enriquecida.