Um espetáculo plenamente satisfatório

Por Enio Squeff (publicado na “Folha de S. Paulo” – Música/crítica, em 21 de maio de 1983)

 

O LAGO DOS CISNES – de Tchaikovsky. Orquestra Sinfônica e Corpo de Baile de Campinas. Regente: Benito Juárez. Dias 14 e 15, 21 horas, no Teatro Municipal.

 

A direção do DSV não deve gostar muito de Tchaikovsky e tudo o que lhe diz respeito. Há alguns dias, por volta das 21 horas, as ruas fronteiras ao Teatro Municipal estavam congestionadas: muita gente queria ver a orquestra e o corpo de baile da cidade de Campinas executarem o “Lago dos Cisnes”. Como sempre acontece, havia táxis em filas triplas devidamente estacionados na Xavier de Toledo e havia o congestionamento dos dias de grandes espetáculos no Municipal. Mas não havia guardas, sequer para constar. Em definitivo, o DSV não deve gostar de quem gosta de música de concerto.
Não é uma posição democrática: até quando posso, pago meus impostos. Deveria receber melhor tratamento do DSV e do Detran. Por dever de ofício tenho tentado chegar em tempo aos espetáculos que sou obrigado a assistir. Mas em geral estanco no trânsito. Há, é verdade, o rigor do Municipal com os retardatários. Concordo com o critério. Mas ele deveria ser extensivo aos fotógrafos, colegas jornalistas, que pensam que todos gostam de ouvir Beethoven (ou Tchaikovsky) ao som dos obturadores de suas máquinas. Em qualquer dos casos, como contribuinte, ando me sentindo muito maltratado. Há outros exemplos que talvez me levem a tentar um dia a antítese do poema “Por que me Orgulho de Meu País”.
É estranho: nunca entendi por que é que o Municipal não possui um circuito interno de TV, exatamente para aplacar as vítimas do trânsito nesses dias. Não arriscaria fazer crítica pela TV, no saguão do Teatro, mas me sentiria menos inclinado a pensar que o DSV tem alguma coisa contra a música, a dança e a ópera. E que o Municipal, afinal, não tem muito a ver com a era eletrônica.
Refiro-me a estes fatos porque graças ao atraso e à previdência que o DSV não possui, os organizadores do espetáculo de dança com a Sinfônica de Campinas, regida pelo maestro Benito Juarez, resolveram atrasar o espetáculo. Cheguei atrasado, mas consegui ouvir todo o “Lago dos Cisnes”. É um bom espetáculo. Por não entender nada de dança, limito-me a observar que seu único defeito talvez seja sua maior virtude: os bailarinos dão o máximo de si e conseguem convencer até o momento em que sobrevém seu despreparo físcio. Mas me pareceram amadores de excelente qualidade. Não é o caso da Sinfônica de Campinas.
Sobre esta orquestra já disse que era amadora e igualmente de nível superior. Provoquei ódios. Hoje já não digo mais isso: o “Lago dos Cisnes”, como quase todas as obras de Tchaikovsky, exige um conjunto de qualidades e de muito preparo. Não é uma grande música. Mas Tchaikovsky foi um excelente orquestrador e, mesmo quando é vulgar, impões aos instrumentistas um virtuosismo que os amadores não têm. Faço restrições: o dificílimo solo de violino do terceiro ato(se não estou enganado), além de alguns trechos entregues às violas e aos fagotes, nem sempre se apresentaram como modelos de afinação. Poderia ser diferente. Mas a Sinfônica de Campinas está com um conjunto extraordinário. São raras as orquestras brasileiras que tocam todas as notas em tutti rapidíssimas; ou que mantenham o ritmo conforme as exigências da dança. A Sinfônica de Campinas, na seguríssima regência do maestro Benito Juárez, consegue isso e muito mais.
É evidente que um espetáculo de dança se faz a partir da movimentação também dos bailarinos e que cabe ao regente cuidar que as coisas se combinem. Logo, dizer que o espetáculo é plenamente satisfatório é definir, no mínimo, o que se pode considerar uma façanha rara. Loas, portanto, à orquestra de Campinas. Seria, porém, o caso de sonhar com temporadas inteiras de balé a serem feitas pela orquestra do sr. Benito Juárez, num futuro próximo? É possível, mas isso subentende apoio de todo mundo, inclusive do DSV. E não vivemos tempos de muita inteligência nos órgãos públicos. Mas ainda há esperanças e não apenas de que as autoridades de trânsito leiam os roteiros culturais do centro da cidade.