Um recital de alto nível

Por Enio Squeff (publicado na “Folha de S. Paulo” – Música/Crítica, em 28 de setembro de 1983)

Teatro Municipal – Schubert: Fantasia em lá menor, opus 103; Lutoslavski: “Variações sobre um tema de Paganini”; Shostakovitch: concertino em lá menor: Milhaud: “Saudades do Brasil”; Gnatalli: Concerto para Noel Rosa”; Vladigerov: “Hora Staccato”. Solistas: Konstantin e Júlia Ganevi (Piano).

Sabe-se pouco sobre o duo búlgaro Ganevi (Konstantin e Julia) que tocou sexta-feira e sábado passados no Municipal. A Bulgária é um país pequeno, socialista e distante. O Brasil é um país grande, capitalista (?) e pouco informado. Explica-se que, apesar da boa divulgação, o Municipal estivesse quase vazio. Mas a Bulgária e sua distância são a única explicação para a ausência de público. Como duo, o Ganevi não fica nada a dever a outros mais conhecidos. Os que gostam de música perderam um belo recital de piano.
Felizmente, a falta poderá ser superada. Anuncia-se uma nova exibição do duo com a Sinfônica Estadual, sob a direção do maestro Eleazar de Carvalho. É uma boa oportunidade. Como duo, o Ganevi tem todas as características esperadas; os dois instrumentistas tocam, em geral, rigorosamente juntos; as intenções são as mesmas, a dinâmica idem. Mas as diferenças sutis não podem ser desprezadas. Sem comparações, a palheta de Julia Ganevi é bem mais matizada. Isso fica particularmente patente em obras românticas como a fantasia em lá menor, opus 103, de Schubert, que foi o ponto alto do programa. A peça é uma das mais intensas de Schubert. Na exposição dos temas há uma proeminência do piano de Julia Ganevi sobre o de seu companheiro. Claro que o pormenor tem a ver com a categoria musicista.
Outro aspecto importante, no duo que está visitando o Brasil, é o repertório. O repertório para duo de piano, ou piano a quatro mãos, não é tão rico quanto se possa imaginar. Na apresentação, porém, o duo mostrou não apenas obras do polonês Lutoslawski, do russo Shostakovitch e outras – mas até mesmo obras brasileiras. Foi o momento, digamos, “diplomático”, da apresentação do duo no Teatro. Procurando serem simpáticos e diminuir a distância que a política impõe a brasileiros e búlgaros, os artistas dividiram-se por alguns momentos. Enquanto Konstantin descansava, sua esposa, Julia Ganevi com o brasileiro Artur Moreira Lima executava um movimento do “Concerto a Noel Rosa”, de Radamés Gnatalli, numa versão para dois pianos de Laércio de Freitas. A música, em si, não surpreende. Gnattalli foi dos primeiros brasileiros a comporem segundo a realidade urbana do Brasil, já com a música norte-americana na nossa história. Compreenda-se que o pianista Artur Moreira Lima tenha sugerido exatamente esta peça a seus amigos búlgaros (foi ele quem os apresentou no Teatro). Para o brasileiro, o Brasil deve ser redescoberto também na sua essência popularesca. Gnatalli é um bom modelo. Inútil acrescentar, porém, que com um novo parceiro tudo funcionou a contento pra Julia Ganevi. Entre bons músicos, não existem diferenças geográficas ou políticas.