Uma noite para Devos e a Municipal

Por Enio Squeff (publicado na “Folha de S. Paulo”, Música/crítica, em 06 de agosto de 1983)

 

ORQUESTRA SINFÔNICA MUNICIPAL – “Concerto em Mi Maior para Trompete e Orquestra”. Solista: Dino Pedini. Beethoven: “Concerto Tríplice”. Solistas: Paulo Bosisio (violino), Antonio del Claro (violoncelo) e Fernando Lopes (piano); Orquestra Sinfônica Municipal, regência de Gerard Devos. Claude Debussy: “L’Aprs-midi D’um Faune”. Ravel: “Bolero”. Teatro Municipal.

Hummel, Bewala, Gossec, Mehul ou mesmo Cherubini, são compositores que a história registra, mas que o repertório contemporâneo praticamente esqueceu. A primeira e única vez que ouvi ao vivo uma obra orquestral de Cherubini foi no exterior: não pude deixar de concluir que a história pode ser injusta, inclusive nas exceções. Hummel (1778-1837), por exemplo, foi apresentado no concerto com que a Municipal encerrou seu primeiro semestre. Poderia aparecer mais vezes.
Não foi, porém, essa a única novidade da série do primeiro semestre. Muitos dos intérpretes que constaram como solistas eram também inéditos: constituem as primeiras estantes da orquestra do teatro e, na maior parte dos casos, deixaram claro que não merecem o anonimato. Pelo contrário: lembro, ao caso, os concertos nos quais atuaram, como solistas, Alejandro Ramirez, spalla da orquestra, Antônio Carrasqueira, primeiro flauta, e, enfim, o último e que motivou a observação sobre Hummel.
Na verdade, foi um dos bons espetáculos da Municipal este ano. O maestro francês Gerard Devos é sóbrio: ao acompanhar o correto trompetista Dino Pedini no bonito concerto de Hummel (cujo segundo movimento lembra o movimento lento do concerto número 24, de Mozart), revelou-se fervoroso adepto do “tempo justo” de que se vangloriava Mendelssohn. Calculo que o fato beneficie os solistas. Pois repetiu, com sucesso, a mesma fórmula para o tríplice, de Beethoven. Não é uma obra que agrade a todo o mundo – guardadas as ressalvas a quem a compôs. Mas se sustenta quando tocada por um trio que pensa e respira junto. Ou seja, se é difícil encontrar incorreções em Antônio del Claro (celo), Paulo Bosisio (violino) e Fernando Lopes (piano), o que ficou é o quanto cada um acabou dando individualmente. Um amigo músico me observou que o tríplice se presta a cumprir obrigações com três solistas de uma só vez. Com o respeito a esses três grandes músicos, o tríplice não deixou de, mais uma vez, cumprir seu papel histórico.
Quanto ao mais, porém, a noite foi mesmo para o maestro Devos e a orquestra do Municipal. No “L’Aprs-midi D’um Faune”, de Debussy, o “tempo justo” do maestro serviu à altura aos instrumentistas, nos quais sobressaíram o flautista Edmund Hass, o oboísta Gilson Barbosa e o Trompista Enzo Pedini. Por isso tudo o grande momento ficaria por conta do “bolero”, de Ravel. É uma obra que depende do pulso do regente na gradação da dinâmica e do ritmo; e, obviamente, dos solistas da orquestra por inteiro. E não teria muito mais a acrescentar, sob estes aspectos, se registrasse que no final o público exigiu bis. Trata-se de uma peça de resistência de um compositor conhecido. Conjeturo que tenha sido incluída no programa para homenagear alguns bons solistas que neste primeiro semestre conseguiram sair um pouco do injusto anonimato que lhes reservaram durante anos. Como, aliás, a história fez com muitos bons compositores.