Uma orquestra suíça de beleza artesanal

Por Enio Squeff (publicado na “Folha de S. Paulo” – Música/crítica, em 22 de abril de 1983)

 

Orquestra de Câmara de Zurique – dia 19 de abril, às 21 horas, no Teatro de Cultura Artística. Programa: Geminiani, “Concerto Grosso” em Sol Menor, opus 2, número 3; J. S. Bach, “Concerto para Violino e Cordas” em Lá Menor, BWV, 1041, solista Zbiniew Czapczinsky; W. A. Mozart, “Divertimento em Si Bemol Maior”, KV 137; Bela Bartók, “Divertimento para Cordas”.

 

Max Frisch, teatrólogo e escritor suíço, faz uma crítica radical a seu país. Segundo ele, por ser um dos epicentros das finanças mundiais, as opções da Suíça se pautariam muitas vezes por conveniências dos depositantes de seus bancos. É uma verdade; muitos suíços sabem disso. Mas, se a contrapartida desta “internacionalização” do país de Max Frisch tem algumas conveniências, não vejo como não incluir neste rol a Orquestra de Câmara de Zurique, que se apresentou esta semana no Teatro Cultura Artística. Dos 24 instrumentistas do conjunto, cinco pelo menos não são suíços. Não se pode concluir que os estrangeiros não estejam dando uma contribuição positiva à Suíça dos bancos internacionais.

É uma conclusão; mas por aí não se pode chegar também à de que a orquestra de Zurique não seja fundamentalmente suíça. Arrisco o palpite de que o sorriso e a vitalidade com que o maestro Edmond Stoutz conduz seus músicos obtenham muito dos pormenores que a orquestra revela: não deixa de ser um modo suíço de encarar o mundo. Ora, seja como for, é exatamente na meticulosidade que se parece dar a grande contribuição da orquestra. Do uníssono do início do “Concerto Grosso” em Sol Menor, de Geminiani, aos “pizzicatti” do último movimento do “Divertimento para Cordas”, de Bela Bartók, há um mundo de diferenças ideológicas muito nítidas. Sob a batuta de Stoutz, entretanto, são tantos os detalhes e a musicalidade que, da nitidez, ficam exatamente essas diferenças. Viria deste gosto quase voluptuoso pelo pormenor, a característica, digamos, suíça do conjunto, como se cada obra devesse ser uma estrutura (relógio?) a ser meticulosamente montada?

É possível. E não que tudo seja absolutamente convincente. A meu gosto, por exemplo, o violinista Zbigniew Czapczinsky, spalla da orquestra, poderia ser menos eslavo em seus pequenos portamentos; principalmente na obra de J. S. Bach, que ele solou. Mas é um aspecto. Pois, no mais, é exatamente pelo extremo cuidado com que toca que a orquestra convence. Nunca a ideia de rococó me pareceu tão clara, quanto na versão que o conjunto deu ao “Divertimento em Si Bemol Maior”, KV, 137, de Mozart. Quem sabe seja um mero gosto pessoal pela ourivesaria suíça. Não duvido, de fato, para esta orquestra os contrastes de dinâmica entre uma frase e sua imitação são absolutamente sensíveis. E há ainda o virtuosismo: se não estou enganado, num dos extras (dados, aliás com prodigalidade) o violinista Zbigniew Czapczinzky, ao tocar a penúltima das danças romenas de Bartók, obteve harmônicos uma oitava acima do que se ouve normalmente. Mera demonstração de categoria? Pode até ser; mas, para uma orquestra que toca em pianíssimo quando isso significa apenas musicalidade, o virtuosismo nunca sobressai como malabarismo técnico.

Em suma, a Orquestra de Câmara de Zurique poderia conduzir a algumas considerações não necessariamente relacionadas com a tradição artesanal da Suíça. E então teríamos de recorrer a Max Frisch ou a Duerrenmat, acerbos críticos de seu país. Mas, a se ficar na grande música da orquestra de Zurique, a única coisa que ocorre são considerações sobre toda uma tradição artesanal. Logo, esta outra Suíça ainda existe e com uma contribuição nada negligenciável dos estrangeiros. E quem ouviu a orquestra de Zurique sabe que ela ainda tem uma feição profundamente humana e bela.