No concerto, a atuação da iniciativa privada

Por Enio Squeff (publicado na “Folha de S. Paulo” – Música/crítica, em 31 de março de 1983)

 

É possível que a crise brasileira desemboque na música com a contrapartida de alguns benefícios: terça-feira passada uma empresária resolveu promover um concerto de três músicos paulistanos contando apenas com a bilheteria. Cláudio de Brito, pianista, Antônio Carlos Carrasqueira, flautista, e Sérgio Lima Gonçalves, fagotista, são músicos muito bons e ninguém supunha que fossem ignorados por não contarem com o patrocínio do Estado ou da iniciativa privada. De fato, não o foram; mas se o público paulistano sabe agora quais os músicos que o merece, está aí uma questão que só o futuro poderá responder.

Pelos meus cálculos, a maior parte dos ouvintes era constituída de colegas dos recitalistas e de estudantes de música. É significativo e elogioso para os três músicos. Foram muito aplaudidos pelos seus colegas por seu desempenho em J. S. Bach, Villa-Lobos, Pattapio Silva, Poulenc, Cesar Franck, Luciano Berio, Lourival Silvestre e Arthur Napoleão. Não creio que se tocassem outros compositores, não teriam merecido o mesmo tratamento. Mas a iniciativa deste recital – que deve ter dado algum lucro – é por si mesma instigante: são raros os artistas locais que se arriscam a tocar pelo que lhes pode render a bilheteria. Parte-se sempre do princípio de que a música de concerto precisa ser subsidiada, o que de modo algum é falso; mas afora as sinfônicas e conjuntos menores, até bem pouco só se conjeturava que alguns conjuntos e solistas estrangeiros podiam adotar a livre iniciativa, sem grandes riscos. Mas o sucesso de bilheteria dos três músicos, denominados, pomposamente, “Concertistas Brasileiros Internacionais”, parece mostrar o contrário: não é o caso de se pensar que a falta de subsídios tenha levado a empresária dos músicos buscar a alternativa do jogo da bilheteria, e com sucesso? Sem dúvida.

E isso tem a ver com a falta de verbas oficiais. Ora, o desempenho principalmente do flautista Antônio Carrasqueira não deixa margens a dúvidas quanto ao acerto da iniciativa e principalmente da escolha dos músicos. O sr. Antônio Carrasqueira está em excelente forma: é um virtuose reconhecível na própria descontração com que se posta no palco; o pianista Cláudio de Brito, integrante da Sinfônica Municipal como seus outros dois colegas, dispensa elogios: é um músico muito capaz e como camerista quase nunca deixa a desejar. Quanto ao fagotista Lima Gonçalves, por ter atuado em apenas duas peças, não mostrou todo o potencial de que certamente é capaz. Tem uma belíssima sonoridade e é sempre afinado. Só se lamenta que, por vezes, não toque mais forte (como ocorreu quando fez o baixo da sonata em Mibemol Maior de J. S. Bach).

Seja como for, por isso tudo, o precedente deste recital é notável: escrevi, faz tempo, que era lamentável o desinteresse com que os regentes titulares de certas orquestras encaravam a atividade camerística de seus músicos. Problemas de estrelismo, na medida em que o crescimento de seus solistas poderia empanar seu insanável egotismo? É possível, mas daí a importância deste concerto: existem muitos músicos nas nossas orquestras que poderiam crescer enormemente se aliassem à sua atividade sinfônica esta desejável atividade camerística. É o que fica desta iniciativa de sucesso e significativamente como sintoma de uma crise. Talvez fosse em tudo suspeito incluir um chamamento do tipo “solistas de todas as orquestras uni-vos”. Mas é isso mesmo que deve ser feito e não apenas em nome do talento encontradiço nos conjuntos sinfônicos – como se depreende da apresentação destes três músicos – mas pelos ensinamentos que a crise brasileira pode ensejar.