Por Enio Squeff, Crítico da “Folha” (publicado na “Folha de S. Paulo” – em 26 de fevereiro de 1984)
Há anos ouvi de um professor daqui de São Paulo que o único modo de entender o rancor reacionário do escritor Gustavo Corção era pela consideração do seu positivismo. Não sei se é assim. E. J. Hobsbawm, respeitado historiador inglês, constata, surpreendido, que México e Brasil foram dos poucos países em que o positivismo teve adeptos expressivos. Pode-se discutir, por aí, que o positivismo em si, talvez, tenha sido muito mais importante do que possam imaginar os que compartilham da ideia de Hobsbawm de que Augusto Comte foi um “pensador medíocre”. O que parece indiscutível, porém, é a sua influência no Brasil.
Por essas e por outras, pode-se arriscar que uma obra poderosa como “Os Sertões”, p. exemplo, talvez seja a expressão máxima deste positivismo. Aconteceu com outras “ideologias”. “A Flauta Mágica”, de Mozart, nasceu sob o influxo direto da maçonaria; difícil negar o valor da maçonaria nos movimentos políticos modernos. Mas afora a ópera de Mozart, pouco mais se conhece de expressivo que foi feito em nome da maçonaria (e “Os Sertões” sequer foi feito “em nome” do positivismo).
Quanto a este e o Brasil, acho que certas questões ainda não foram estudadas em todas as suas dimensões. Há quem sustente que até na música existam muitos influxos positivistas. Dizia Álvaro Moreira a propósito do positivismo que em seu tempo de juventude ele estava no ar que se respirava nas ruas. Pode-se prever que tais ares se infiltraram nos músicos e que o empenho com que até mesmo compositores brasileiro (e críticos) buscam o “absoluto” científico em seus procedimentos e juízos, se não é positivismo, não deixa de ser um pouco o prolongamento de seus ranços.
São conjeturas. Leopoldo Miguez, um de nossos mais importantes compositores do século passado, não foi mais positivista que republicano. Mas não duvido de que ao incorporar procedimentos wagnerianos em suas músicas não tivesse em mente “influenciar” seus ouvintes para o que considerara o futuro da música, a qual, por sua vez, seria o futuro do País, seu progresso, seu aperfeiçoamento político e por aí afora. Sob este aspecto, quem sabe, Nepocumeno foi também “positivista” a sua maneira. Ao incorporar o método de harmonia de Schoenberg poderia estar querendo mais do que uma nova tentativa no estudo de uma matéria musical.
Como disse, são ilações. Um crítico feroz como Oscar Guanabarino que dominou durante anos a vida musical brasileira, não devia ser muito diferente de seus colegas quando deplorava em Villa-Lobos o desprezo pelas “leis” harmônico tonais que ele julgava eternas. Ao se ler algumas de suas críticas, chega-se ao mesmo que ao se estudar alguns textos de Euclides da Cunha sobre certos assuntos, ou ao se conhecer alguns discursos de certos militares brasileiros contemporâneos. Para uns e outros existem “leis científicas”. Não importa que as evidências mostrem que isso não existe. Claro, no caso de Euclides se desculpa e se justifica: foi aluno da Escola Politécnica, reduto do positivismo radical e soberano de um Benjamin Constant. Não se pode dizer o mesmo sobre o crítico musical e os militares.
Seja como for, na música as coisas devem ser vistas com cuidado. Se um certo confessionalismo pode ser detectado como um procedimento mais ou menos normal entre os positivistas republicanos, Miguez deve ter sido “positivista”. “Ave Libertas” obra que só se ouviu uma vez aqui em São Paulo (como quase sempre graças a Eleazar de Carvalho) pretende-se uma saudação à República. Com seus metais em fortíssimo, por seu cromatismo não me pareceu muito diferente das obras congêneres escritas em outros países na mesma época. Mas se pretendia uma homenagem a uma República “cientificamente” concebida. Pode-se tentar concluir o resto.
Pois quanto ao mais, muito do que existe no Brasil, se não é do positivismo não deixa de ser alguns dos seus sintomas. Ao se conceder que os que fizeram 64 não eram apenas maliciosos, deve-se concluir que parte da sua ingenuidade deve ter advindo da ideia abstrusa de que como a “reforma de mentalidades” – uma categoria tipicamente comtiana – se chegaria à reforma do País. Foi o que se está vendo, embora, evidentemente, nem tudo seja positivismo. Por exemplo: agora que alguns empresários estão dizendo que não têm nada a ver com o que está aí, fica-se a conjeturar com quem foi mesmo que os militares e os tecnocratas nos governaram nestes últimos 20 anos. Assim também o oposto. Ao se ouvir certos economistas, chega-se à conclusão de que a economia é ciência pura. E isso – que talvez tenha a ver com o nosso momento musical – se não é positivismo, é malícia. Mas as ideologias mudam. Por isso são ideologias. Com o “positivismo moreno” não deve ter acontecido diferente