Esperanças e aplausos no Municipal

Por Enio Squeff, Crítico da “Folha” (publicado na “Folha de S. Paulo” – em 28 de fevereiro de 1984)

 

ORQUESTRA SINFÔNICA MUNICIPAL – Giuseppe Verdi: abertura “La Forza del destino”; Rachmaninoff: Rapsódia sobre um tema de Paganini, para piano e orquestra, opus 43; solista: Giuliano Montini; Rimsky Korsakov: A Grande Páscoa Russa; Carlos Gomes: abertura de “Lo Schiavo” e “Il Guarany”; regente Isaac Karabtchevsky.

 

Durante o concerto do Municipal, no domingo, ouvi de um maestro amigo que no Brasil as coisas andam confusas. Enquanto uns se preocupam com as eleições diretas, outros morrem de fome ou queimados, por pura incúria (como aconteceu em Cubatão) e outros ainda, se preocupam com a afinação dos violinos. Neste último caso, estávamos eu, ele, os outros ouvintes e os músicos. A observação é tentadora. Sugere que Beethoven, Carlos Gomes, e o resto não podem ser superestimados em face das mazelas do Brasil.

Não podem mesmo. Consta que foi esse um dos motes da Revolução Cultural Chinesa. Diante da urgência dos problemas chineses, as autoridades resolveram que as sinfônicas deveriam ser desmobilizadas. Parece que a medida não deu os resultados esperados: músicos não têm muita vocação para plantar batatas. Mas a tentação persiste, inclusive entre os músicos.

No domingo, o Municipal estava lotado. Calcula-se que pela longa paralisação das atividades sinfônicas na cidade, os ouvintes acorreram em massa para ouvirem o primeiro concerto ao vivo de 1984. Como se pode prever, não se ouviu o melhor. Da percussão às cordas, passando pelas madeiras e os metais (com exceção, talvez, dos trombones), a orquestra soou como quem vem de um longo período de inatividade. Salvou-se, naturalmente, o pianista Giuliano Montini. O maestro Isaac Karabtchevsky é um acompanhador muito seguro, mas como a orquestra só ensaiou duas vezes, se algum problema aconteceu com o solista, debite-se ao ritmo nem sempre preciso do conjunto. Nas aberturas de Verdi, Rimsky Korsakov e Carlos Gomes que completaram o programa estes problemas emergiram de forma mais ou menos clara.

Contudo, o público aplaudiu muito e eu me permito a algumas hipóteses, talvez forçadas. Certa vez, Mário de Andrade observou que a abertura de “O Guarani”, não era uma obra nacionalista; tornara-se porém, “patriótica”, por um fenômeno que o inconsciente coletivo talvez explicasse. Se é assim ou não, “O Guarani” foi o momento de emoção do programa. Avento a possibilidade de que, quem sabe, os ouvintes presentes ao concerto ao ouvirem o “velho” Carlos Gomes, tivessem se emocionado na razão direta com que por vezes nos identificamos, em certas obras, com um mundo desejável, como se a recuperação dos tempos e da dignidade perdida de uma comunidade, fossem algo mais que a arte pode também sugerir. Pra muita gente deve ter sido assim. A preocupação pela boa música, certamente não ajuda muito na recuperação do Brasil sofrido de hoje. Mas o público parece ter garantido com seus aplausos que a esperança na música é a esperança também por novos tempos. Valham-nos estas esperanças.