As relações entre a música e a literatura

Por Enio Squeff (publicado na “Folha de S. Paulo” em 21 de agosto de 1978)

 

Muito se tem falado sobre as relações entre músicos e escritores. Um amigo afirma que a música não é coisa séria e que, a rigor, os bons escritores nunca deveriam se preocupar com ela. Pode ser verdade, mas lembro que se Machado de Assis fosse vivo, certamente sua crítica sobre a pianista argentina Martha Argerich teria o sentido desejável de qualquer crítica: seria a medida exata do que a pianista é. A razão é simples: o que me chamou a atenção em Martha Argerich foi a perfeita harmonia entre seus braços e suas mãos – algo como se a pianista tocasse com os braços, antes mesmo do que com os dedos. Ora, Machado, como se sabe, tem um conto delicioso sobre os braços de uma mulher. Talvez ligasse sua fina ironia, seu sensualismo sutil a essa realidade que a pianista conseguiu transpor para o piano. E Machado certamente poderia fazê-lo, pois foi durante certa época crítico musical.

Entre as hipóteses de que a música não é tão séria a ponto de merecer o olhar dos escritores, porém, há exemplos eloquentes de que muitos fizeram exatamente isso. Stendhal fez isso e pior. Este escritor a quem se deve uma biografia bastante completa sobre Rossini foi de uma submissão atroz. Elevou seu biografado a píncaros inimagináveis – tudo para concluir que só outro mortal se compararia ao autor de “O Barbeiro” – Napoleão Bonaparte. O exagero, aliás, foi compartilhado pelo próprio compositor que, segundo um outro escritor, ao constatar que uma senhora estava entre ele e Wellington, num famoso banquete promovido por Maetternich, depois de adular a senhora, não vacilou em dizer (sabe-se Deus com que intenções) que ela deveria ter muitos motivos para se orgulhar: estava sentada “entre os dois mais famosos homens do século”.

Rossini talvez tenha exagerado – mas o exagero da música levou muitos escritores ou mesmo políticos a fazerem constatações quase tão próximas quanto a sujeição de Stendhal ao gênio do compositor italiano. Conta-se que Lênin a quem se condena pelo fato de ter sido bolchevique, foi também um antimusical histórico. Isso não o livrou destas fraquezas que mesmo um materialista possui. Li certa vez que ao escutar uma sonata de Beethoven emocionou-se incrivelmente a ponto de ter de justificar que a música beethoveniana era perigosa demais, pois induzia a pensar que todos os homens eram irmãos. Lênin, como bom conhecedor da literatura de seu país talvez tenha apenas repetido Leon Tolstoi que, pela boca de um de seus personagens disse mais ou menos o mesmo de Beethoven – só que colocando suas dúvidas em torno da sonata Kreutzer. Ela seria imoral, sensual demais.

No Brasil, afora Machado de Assis, os escritores não falam muito de música. Manuel Bandeira, entretanto era fanático admirador de Villa-Lobos e vi, não sei onde, que Euclides da Cunha apreciava muito Saint-Saens, mais precisamente sua ópera “Sansão e Dalila”. Dentre tantos escritores que possuímos não é muito, concordo, mas o suficiente para mostrar que até mesmo no Brasil alguns intelectuais perderam tempo com a música. Pois em outras plagas isso ocorreu e de forma sistemática. Thomas Mann, por exemplo, em seu “Doktor Faustus” não só escreveu sobre música; preocupou-se de tal maneira com o assunto que não teve dúvidas em recorrer a seu amigo Theodor W. Adorno para que escrevesse algumas dezenas de páginas a respeito, páginas que foram integralmente aproveitadas por Mann. O exemplo de Mann é suspeito, concordo. Ele era alemão e os alemães têm destas coisas. Acontece que houve gente menos suspeita como o inglês Bernard Shaw que igualmente preocupou-se com essa matéria menos séria. E, como em tudo o mais, chegou a fazer uma de suas costumeiras blagues sobre o assunto. Depois de tecer algumas considerações sobre uma ópera, o escritor desencavou uma frase que ainda hoje se aplica: “Tenor – teria sentenciado o teatrólogo – não é voz, é diagnóstico”. O caso de Shaw seria apenas uma brincadeira e, de resto, não foi tão contundente quanto o próprio Beethoven. E que este compositor foi particularmente crítico em relação aos escritores – o que coloca a questão levantada pelo meu amigo exatamente de pernas para baixo; ou seja, para certos músicos, a literatura e a poesia não poderiam ser atividades que merecessem a atenção dos compositores. E a sua opinião surgiu a propósito de alguns poeta que conhecia.

Quando lhe perguntaram o que achava deles, Beethoven, com um desprezo olímpico de quem julgava a aristocracia uma classe decadente (e a História, afinal, deu-lhe razão), escreveu para o interlocutor: “Os poetas amam demais as lantejoulas da corte para serem levados a sério”.