Por Enio Squeff, Crítico da “Folha” (publicado na “Folha de S. Paulo” – em 06 de maio de 1984)
No único concerto que assisti em Brasília, saí com a convicção de que a cidade não tinha lá muita ideia do que seria sua própria cultura. A Orquestra de Teatro Nacional tinha acompanhado o violoncelista Antônio Meneses, na ocasião a mais recente glória nacional, depois de conquistar o ambicionado prêmio Tchaicóvski, em Moscou. Tratava-se de uma espécie de homenagem pública a um brasileiro famoso; no entanto o teatro estava vazio. Ao que tudo indicava, Brasília continuava um cenário; não uma cidade de “carne e osso”.
Ledo engano, graças a Deus: ao se iludir de que bastava decretar “estado de emergência” e que Brasília ficaria isolada do resto do País, o Governo parece ter chegado à mesma conclusão. A votação pelas diretas encontraria uma cidade apática, aquiescente com os que a julgavam fechada ao mundo. Não foi bem assim e quando o general Newton Cruz lutou contra as buzinas (não sei se existe alguma comenda especial para ato tão heroico; sugiro, porém, que se crie a medalha da “batalha das buzinas”), deve ter tido a impressão de que a desgraça se tinha infiltrado em definitivo na ideia que ele fez do que seja o Brasil. Com as devidas proporções, e sem querer me comparar com tão excelso estrategista (inclusiva se ele não gostar destas palavras, peço-lhe desde já “perdão”), eu e o general Newton Cruz nos equivocamos. Mas o nascimento de Brasília como cidade tem uma importância capital (com o perdão do trocadilho). Não ouvi de ninguém que Brasília alcançou sua cidadania no conteúdo e na forma com que outras cidades o fizeram em outras épocas; as cidades só são o que são quando se fazem polis, ou seja, quando se constituem também como um corpo político na sua identidade como cidade. Com outras palavras, Brasília não é mais apenas um cenário, é também a mais nova cidade brasileira, fato que não pode ser desprezado. Até aqui, porém, Brasília talvez não tenha conquistado seu lugar no território cultural. E este é um problema.
Não quero ser simplista, evidentemente. Isso de fisionomia cultural é um fato que independe de quem o governa. O mesmo violoncelista Antônio Meneses foi recebido em certa ocasião pelo presidente Figueiredo em Brasília – isso foi e continua sendo bom. Mas uma cidade são seus cidadãos em torno de seus espaços culturais e por extensão de seus músicos.
Na noite que ouvi Antônio Meneses, a Orquestra do Teatro não atuou bem. Explicou-me o spalla do conjunto que a orquestra não estava ainda suficientemente preparada; como o alemão que a regia era incompetente e se enganou, a orquestra desabou com ele: no final de uma das peças, por exemplo, ninguém entendeu ao certo o que aconteceu, mas principalmente os músicos. Registrei o desastre na época. Não houve vaias. A questão sobre a música em Brasília, porém, é das mais interessantes. Brasília possui entre seus cidadãos um dos maiores compositores brasileiros deste século, o maestro Cláudio Santoro, personalidade também interessante que, no entanto, se não vive numa espécie de “estado de emergência”, ainda não é uma glória de Brasília.
Digo-o com pouca isenção: sou amigo do Sr. Cláudio Santoro. Mas está entre os grandes músicos brasileiros deste século, como disse. Inclusive nas suas contradições: na época em que a música brasileira pagava tributo a seu passado imediato, representado por Villa-Lobos, o maestro Cláudio Santoro compôs com seus colegas do grupo “Música Viva” um compromisso violentamente antinacionalista. Vivia-se o fastígio da esquerda tradicional. Intelectual que se prezasse ou era do Partido Comunista ou era seu simpatizante. O maestro Santoro não era diferente de Carlos Drummond de Andrade, de Jorge Amado, ou de Oscar Niemeyer, o criador de Brasília. Ao contrário de certos intelectuais de hoje que são violentamente anti-soviéticos na medida em que os franceses por motivos principalmente nacionalistas fazem anti-sovietismo, o Sr. Cláudio Santoro não era contra a URSS. E quando Stalin aconselhou a seus partidários ou simpatizantes que mudassem de posição, muitos dos músicos que faziam músicas serialista, como Cláudio Santoro, mudaram de posição. É uma história conhecida. O que poucos se dão conta é de que a história das cidades é como a dos seus homens. Parece uma feliz coincidência que Cláudio Santoro viva na Brasília destes anos como antes viveu o Estado Novo no Rio de Janeiro de Getúlio Vargas. Mas assim como a oscilação de sua carreira de compositor nunca escondeu ou obliterou o grande músico, a história das grandes cidades, no final das contas, é um pouco o destino dos homens que a compõem. Brasília já foi a sua universidade com Darcy Ribeiro na sua reitoria; hoje Brasília é a universidade do Sr. José Carlos Azevedo – mas dela fazem parte professores como Cláudio Santoro. Na oscilação entre dois nomes, tem se tudo o que compõe uma cidade. Brasília já é uma cidade. Apesar de ter ignorado um de seus grandes músicos como Antônio Meneses, dá guarida já há muitos anos a Cláudio Santoro – um de seus cidadãos mais ilustres: a despeito e contra general Newton Cruz – ou do reitor da Universidade de Brasília – há uma outra cidade no território brasileiro. Um dia, depois das buzinas, ela saberá aplaudir os que fazem respeitável o seu País.