Um “Navio” caro, mas bem feito

Por Enio Squeff, Crítico da “Folha” (publicado na “Folha de S. Paulo” – em 27 de março de 1984)

 

O NAVIO FANTASMA – De Richard Wagner. Elenco: Heikki Toivanen (Daland), Hanna Lisowska (Senta), Claudinir Aére (Erik), Graciela Altamirano (Mary), Airton Nobre (O Piloto), Carmo Barbosa (O Holandês). Regente: Isaac Karabtchevsky. Diretor de cena: Fernando Peixoto. Cenografia e figurinos: Hélio Eichbauer. Orquestra e Coro do Teatro Municipal. Hoje e quinta-feira.

 

Desde que se aceite que o Municipal seja uma espécie de “fábrica” de espetáculos, talvez se possa apontar alguns defeitos em sua linha de montagem a partir de uma análise de seu produto final. Faço a comparação, porque isso do Municipal produzir suas próprias óperas é fato recente; não me ocorre outra razão para discutir algumas falhas de seu produto. “O Navio Fantasma”, de Wagner, ópera que termina sua curtíssima temporada na quinta-feira, é um bom exemplo.
Nada de comparações com o passado, evidentemente. Em 1983, a temporada foi um fracasso também musical. Neste ano, safa-se, em parte, exatamente o aspecto musical do espetáculo. De um certo empastelamento na abertura (quando nem tudo foi bem), a alguns bons momentos ao longo do restante da ópera, a direção sempre segura do maestro Isaac Karabtchevsky parece ter se sobreposto ao nervosismo de quase todo o mundo na estreia. Mas ópera não é ainda um produto que o Municipal se acostumou a produzir.
Difícil, por exemplo, aceitar todas as soluções da encenação e dos cenários. Em “O Navio”, como em quase todos os trabalhos de Wagner, a música está para a cena, como as vozes para seus respectivos registros. Bobagem repetir que o conceito de “obra de arte total” não é uma invenção da crítica e que o próprio Wagner insiste em que a música de seus “dramas” é apenas um aspecto (mesmo numa ópera onde o “gesamt kunswerk”, o conceito mesmo de “obra de arte total”, não estivesse ainda plenamente desenvolvido).
Ora, a direção de cena do sr. Fernando Peixoto até certo ponto pareceu-me segura. Como atores, Carmo Barbosa (o “Holandês”), mas também e principalmente a polonesa Hanna Lisowska (“Senta”) e mesmo Heikki Toivanem (“Daland”), (este apesar de suas deficiências vocais), atuam bem. São mais que satisfatórios. Se a isso acrescentar que mesmo o tenor Claudinir Aére, com seu alemão macarrônico, não compromete muito, digamos que as coisas, então não estão más. Mas o cenário do sr. Hélio Eichbauer não justifica muito o fantasmagoria de “O Navio Fantasma”. Na cena da tempestade, por exemplo, o cenário deixa apenas à música a sugestão do mar encapelado. Ou seja, talvez coubesse ao regisseur Fernando Peixoto uma solução para o problema. De qualquer modo, a cena presta-se mais para ser ouvida do que para ser vista, o que é uma contradição em termos.
Resta, claro, a música: o bom trabalho do coral (não obstante alguns problemas rítmicos), a voz sempre bonita de Graciela Arayo Altamirano e a movimentação geral de algumas cenas da massa de figurantes, o que faz do espetáculo todo uma cena digna de ser vista. Mas aqui temos o problema mais sério desta “fábrica de óperas”. Trabalhar em torno de um produto caro, para oferecê-lo a não mais que oito mil pessoas, parece supor que São Paulo seja uma cidade rica e que o Municipal não é sustentado pela totalidade do povo paulistano. Não é o que a Prefeitura parece pensar. Mas, neste caso, como justificar a mobilização de tanta gente e de tanto capital para que um produto desta natureza não seja democratizado amplamente? Gostaria de ter uma resposta. Pois alegar que pelos preços dos ingressos, esta ópera está aberta a todos, supõe que o preço de um produto não é determinado pela grande demanda em face da pequena oferta. E sob este aspecto, “O Navio” é um produto caríssimo. Ou não?