Da importância do repertório

Por Enio Squeff (publicado na “Folha de S. Paulo” – Música/crítica – em 25 de outubro de 1983)

 

Paulo Porto Alegre – Recital de violão. Programa: Fantasia 15, de L. Milan; suíte 25, de S. L. Weiss; Rossiniana, de G. Giuliani; Fandanguillo, de J. Turnina; Elogio de la danza, de L. Brower; sonatina, de F. Moreno Torroba. Domingo, dia 23 no Anfiteatro da USP.

 

Desde que o repertório se tornou o corolário do intérprete (até princípios do século passado, o intérprete e o compositor praticamente se confundiam), o que um músico toca, pode pesar tanto quanto a forma pelo qual ele se revela ao público. Um depende do outro. No domingo, por exemplo, o violonista Paulo Porto Alegre se apresentou no anfiteatro da USP: tocou o repertório que levará a um concurso internacional no Chile. Pode-se prever que será julgado não apenas por sua técnica, mas pelo programa que escolheu.
Quanto ao primeiro item, pouco a temer: o violonista Paulo Porto Alegre é um dos melhores instrumentistas brasileiros da nova geração. Por ser brasileiro, por ter atrás de si toda uma escola de bons intérpretes e por ostentar muito talento, não precisa temer comparações: deverá fazer bonito no Chile. Trata-se de um instrumentista capaz que trabalha sobre seu instrumento com grande sutileza. Vale ouvi-lo na execução de harmônicos, na limpeza com que se descarta de passagens de alto virtuosismo. Por aí, nenhuma restrição. Mas exatamente na exposição de seu virtuosismo, o sr. Paulo Porto Alegre escolheu, dentre outras, uma peça intitulada “Rossiniana”, nº 3, de Giuliani, compositor que morreu dois anos depois de Beethoven. Poderia ter dispensado a lembrança deste nome.
Claro, não se torne um compositor pelo que, afinal, ele não representa. Além de Giuliani, o violonista tocou obras de Luis de Milán, Joaquim Turina, Brower, e Torroba. Nestes dois últimos, o sr. Paulo Porto Alegre mostrou tudo o que sabe. E se pelo que exibiu na obra de Brower (Elogio de la danza) vale como referência; diria que é na música contemporânea que o violonista tem seu grande trunfo. Ocorre que a inclusão da peça de Giuliani num país que tem Villa-Lobos, talvez o maior compositor para violão neste século, parece-me, no mínimo, um equívoco desnecessário. Deste compositor (Giuliani), sabe-se que insistiu em escrever o que pensava. Para grande parte dos estudantes de violão, ele cumpre uma função importante: é virtuosístico o suficiente para treinar os dedos. Mas como compositor, Giuliani depõe contra o violão. Até quando o ouvi, é redundante, grandiloquente, sem nada para dizer que não resulte inútil. Não conheço sua biografia. Deve ter sido bom pai de família, homem probo que gostava de macarrão. Se não foi nada disso, porém, pior para os que dele se lembram como compositor. Não é o que fica do sr. Paulo Porto Alegre, felizmente. Mas ele é um intérprete, um belo instrumentista. Desnecessário insistir que seu compromisso é com a grande música.