As lições de Padre Vieira

Por Enio Squeff (publicado na “Folha de S. Paulo” em 27 de outubro de 1983)

 

“(…) No juízo dos homens não é assim. Tereis a consciência mais inocente que a de Abel, mais pura que a de José, mais justificada que a de São João Batista: mas se tiverdes contra vós um Caim invejoso (…), ou um Herodes injusto, há de prevalecer (…) a tirania contra a justiça.” Sermão do Segundo Domingo do Advento. Padre Antônio Vieira.
As condenações dos padres Aristides Camiou e François Goriou podem ser discutidas sob o ponto de vista da justiça; alguém lembrou que o caso não teve a repercussão previsível porque outras emergências andam mobilizando a vida brasileira. É provável e não duvido que as relações entre o governo e a Igreja desandem definitivamente. O STM não é o governo e os padres franceses não são a Igreja. Uns e outros, porém, são representativos. Como lembraria o padre Antônio Vieira, quando César entra na seara divina, esta tende a entrar na seara de César.
A alusão ao padre Antônio Vieira pode ter vários sentidos. Como quase todos os escritores do nosso passado (incluindo-se aí os de Portugal; o padre é dos dois países), Antônio Vieira só entra em nossa história como referência. Foi talvez um dos maiores prosadores da língua portuguesa (e brasileira). Brigou no Brasil contra os colonos que queriam a escravização indígena; foi inimigo da Inquisição. Parece ter sido uma das poucas cabeças lúcidas do Brasil e de Portugal contra o obscurantismo: nada o livrou, porém, do “pecado” de atentar contra o poder temporal em nome, exatamente, das relações que o poder detinha com a Igreja. Tanto que foi preso. É a história.
Mas por aí a questão vai longe. O que os historiadores chamam de “regalismo” brasileiro é uma realidade de duas faces: de um lado, exige proclamas dos governantes em toda a hora e lugar de que são defensores da Fé Cristã e do Catolicismo; de outro, porém, e inversamente por causa disso, não deixam de castigar com a mais feroz repressão os padres ou “cristãos” que se rebelam contra o poder temporal – e em nome da religião. Ou seja, o confessionalismo serviria para tudo. O caso do padre Vieira seria claro; o dos padres franceses nem tanto.
Sobre a condenação destes, trata-se de um juízo difícil de fazer. Mas o precedente do padre Vieira e dos oturos jesuítas que sofreram exatamente nas mãos dos Estados cristãos de Portugal, na história, e do Brasil, na atualidade, demonstra que as “heresias” também serviram ao Estado enquanto tal. Só raramente à Igreja. Em outras palavras: os dois padres condenados talvez tivessem sofrido menos se não fossem exemplares. Levanto a hipótese de que, se não fossem padres, não exporiam de forma tão evidente um cisma que desnuda o “cristianismo” dos que fizeram 64.
É uma hipótese. E sob este aspecto, a maçonaria brasileira, com seu ranço antijesuítico (como o da companhia de Jesus contra a maçonaria tradicional), talvez seja apenas o reverso da mesma medalha. Inclusive, como omissão histórica: nunca se entende por que é que a Igreja deu tão pouco ao padre Vieira. Ao que consta de sua biografia, foi um dos homens mais dignos de seu tempo e de Portugal. Como escritor, é de uma atualidade impressionante. No entanto, talvez por conveniências gerais (inclusive das histórias “oficiais” da Literatura), está meio esquecido. Se isso tem a ver com os padres franceses condenados, a culpa, no caso, talvez seja só do Estado. Pois se continuamos o maior país católico do mundo, um fato é significativo: na Polônia, país declaradamente comunista, ateu etc. etc., não se sabe de padres que tenham sido condenados por incitar o povo contra o governo (e isso se sabe que eles fazem). Mas no Brasil o crime dos dois padres é exatamente esse. Como conclusão, talvez se pudesse augurar que um dia a separação entre o Estado e a Igreja venha realmente a ocorrer no Brasil. Da Igreja já se sabe que não quer ser Estado; mas do Estado, (ou pelo menos do atual governo) se sabe que quer ser Igreja (além de querer ser Estado). Realmente, não vivemos num país ameno. E acho que o pior do nosso “feudalismo” ainda está por vir.