“Elitistas” versus “populares”

Por Enio Squeff (publicado na “Folha de S. Paulo” em 02 de outubro de 1983)

 

Os músicos da Sinfônica Municipal de São Paulo estão pensando em enviar a seus colegas do Municipal do Rio, uma espécie de manifesto de desagravo. Os músicos cariocas, alegando que seu repertório não tinha nada a ver com a cantora Clementina de Jesus, negaram-se a acompanhá-la numa apresentação projetada pelo Governo. Ato contínuo, foram acusados de “elitistas” e “racistas”. Ao que tudo indica, os músicos de São Paulo entenderam a posição de seus colegas: ninguém exige a que a sra. Clementina de Jesus interprete o “Pinagea cantando” do último ato, do “Otelo”, de Verdi. Portanto a recíproca deveria ser verdadeira. Os paulistas sabem disso. Mas não descartam a hipótese de que a moda possa pegar. Daí o desagravo.
Não se trata de mais uma paranoia coletiva. Nesta semana houve uma mudança expressiva no Departamento de Teatros da Prefeitura. Saiu o sr. Max Altman, que quase certamente será substituído pelo teatrólogo Fernando Peixoto. Segundo o secretário Fábio Magalhães, o que motivou a demissão do ex-diretor, foram diferenças de concepção. Não há por que duvidar do secretário. Mas entreouvi de alguns elementos dos escalões inferiores que, com a saída do sr. Max Altman, o Municipal será “menos elitista”.
Ora, está aí uma questão complexa. Não se a quantas anda a citada briga no Rio de Janeiro. É evidente, porém, que parece estar havendo um confusionismo deliberado entre o que alguns teimam em classificar de “popular” – como se realmente o povo participasse da confecção de rocks e quejandos – e o que, em má hora, Mário de Andrade classificou de “música erudita” (??). Não duvido, por exemplo, que a continuarem as propostas de “popularização da cultura” nos termos em que a colocam certos oposicionistas, daqui a pouco alguém descobrirá que Beethoven e Brahms são os maiores inimigos da cultura brasileira. A nossa submissão ao FMI teria como fundo musical, a obra de Villa-Lobos (como a do Reich teve Wagner) e os supremos inimigos do povo se situariam nos museus, nas bibliotecas ou, como defendeu há pouco um cronista, nos críticos de arte. Em outras palavras: o mal dos músicos de concerto seria o de tocarem os grandes nomes da história da música; ou seja, o mesmo Beethoven ou Bartok (ou Wagner ou Verdi) que se executam na Alemanha, na Grécia, em Cuba, ou na China Comunista. Logo deveriam ser banidos. Que dizer a isso?
Não tenho muitas respostas. Lembro-me de que logo depois de 64 respondi a um inquérito policial militar instalado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Foi um episódio doloroso: de um lado professores até de música, obedientes aos militares a inquirirem seus colegas e alunos. De outro, nós “os inimigos públicos” a tentarem responder porque é que éramos a favor do socialismo e já naquela época, contra submissão ao FMI. Refiro-me ao episódio não porque me custou alguns empregos; ou porque, na mesma época, nomes como os do compositor Claudio Santoro tivessem entrado no index da Polícia Federal e do Departamento de Estado (há pouco o sr. Claudio Santoro, um dos maiores compositores brasileiros de todos os tempos, foi proibido de entrar nos Estados Unidos; consideraram-no um perigoso agente a serviço de Moscou o que é, no mínimo, um acinte). Mas porque naquela época os que iam ou faziam música de concerto, não se contavam entre a maior parte dos professores que aceitavam o papel de inquisidores. Portanto, não vejo onde o elitismo.
Mas a discussão não é nova. Logo após a revolução de outubro, na Rússia, nasceu entre algumas tendências socialistas a tentação de porem a pique tudo o que a burguesia tinha amealhado. Foram destruídos museus, bibliotecas. Investiram-se contra a grande música produzida durante pelo menos três séculos. Lenin, o insuspeito Lenin, não só ordenou a que se coibissem tais vandalismos feitos em nome da “revolução proletária”. Pediu a Maximo Gorki que explicasse às massas que um Estado operário deveria preservar exatamente a cultura do passado. “Com o tempo” (sic) ela passaria patrimônio de todo o povo russo…
Inútil discutir se isso aconteceu ou não. E a não ser as senhoras marchadeiras ou os direitistas, ninguém pode se iludir com a eminência de uma revolução socialista no Brasil. Mas em alguns Estados onde a oposição venceu, parece haver uma tendência de tratar os legítimos patrimônios culturais que deveriam atender a toda a população como meros apêndices da indústria cultural. O “popular” seria o que se impinge ao povo (com o devido pagamento de royalties; ou alguém duvida de que o lixo que se ouve nas rádios é pago em dólar?). Como para isso não se contam os processos de aliciamento, ficam os oportunistas a atacarem os músicos de concerto por se recusarem a tocar uma música para o qual não foram treinados. Seria o caso de se lembrar que os músicos do Municipal do Rio tocariam de bom grado com as negras Shirley Verret ou Grace Bunbry, não porque são negras, mas porque cantam óperas (como já fizeram com Grace Bunbry)? Ou que os músicos tanto daqui como do Rio ou Porto Alegre tocariam de bom grado em favelas se lhes dessem condição para isso? Acho que não. Mas, neste caso, provavelmente, o povo quereria ouvir música de concerto dentro do Municipal; e não é isso que os “neo-esquerdistas” querem. Pois quanto ao mais, tais populistas parecem também desinformados. E em muitos sentidos. Está em São Paulo o diretor artístico do Teatro Alla Scala, Angelo Dessena, membro do Partido Comunista Italiano. Trata-se de um homem inteligente, culto, etc. etc. e que é a favor do socialismo em seu país. Não ouvi dele que a orquestra do Scala pretende substituir Plácido Domingo por Sergio Endrigo para o bem da futura pátria socialista italiana.
Em tempo: na crítica que fiz sobre o recital do pianista José Eduardo Martins escrevi: “Enfim, sob muitos aspectos, o sr. José Eduardo Martins e seu empenho cultural são discutíveis. Mas exatamente no inverso do pragmatismo.” Fica a retificação.