Menezes, no reino do piano

Por Enio Squeff (publicado na “Folha de S. Paulo”, Música/Crítica, em 31 de julho de 1983)

 

Santo Agostinho costumava dizer que o pecado de Judas tinha sido bendito. Sem ele, Cristo não teria morrido pelos homens. Como homem inteligente ou, quem sabe, um gênio, Santo Agostinho constatava um paradoxo para saudar a contrafacção que o satisfazia. Não sei se forço a natureza ao dizer que na existência dos pianistas temos a nossa maldição musical benfazeja. Pois foram eles que sustentaram durante anos nossa vida musical. Mas já temos Antônio Menezes que é violoncelista. Talvez, afinal, o reinado dos “malditos” tenha terminado.

Falo em teoria e como o respeito devido a todos os grandes pianistas brasileiros, muitos dos quais são meus amigos. Mas não creio que haja melhor representante dos novos tempos brasileiros do que este jovem violoncelista que no ano passado surpreendeu meio mundo ganhando o prêmio Tchaikovsky, em Moscou. Quanto a suas qualidades, claro, pouco a discutir; são discutíveis, talvez, na medida em que seu lugar é ao lado dos maiores deste século. E então teríamos de debater quem são eles e qual o lugar de Antônio Menezes. No mais, porém, sua contribuição para a música brasileira talvez não seja avaliada imediatamente.

Não estou abstraindo nada. Para esmagadora maioria dos que vão a concertos no Brasil os heróis ainda são os pianistas. Existem alguns regentes que já fazem também parte deste gurpo fechadíssimo; com seu “charme e veneno” conseguem ser tão conhecidos (e queridos) quanto os nossos pianistas mais festejados.

Há, evidentemente, os ouvintes estrangeiros: os descendentes de alemães ou os próprios; os norte-americanos, os descendentes de italianos, e outros. São os que garantem parte do público quando aqui chegam os espetáculos de fora. Como todos os públicos, mostra-se tão ou mais preconceituoso; e se garante em conhecimento o que as plateias brasileiras não têm – com raras exceções aplaude com antecedência seus compatriotas; e naturalmente, por serem seus compatriotas.

Faço o juízo pelos muitos estrangeiros que não vi no Cultura Artística no dia da apresentação de Antônio Menezes e do pianista Luiz Fernando Benedini. Fosse o “Prêmio Tchaikovsky” do ano passado um nome complicado certamente muitos estrangeiros iriam. Notem: não quero acrescentar ao preconceito desta gente qualquer queixa nacionalista. Os estrangeiros são tão nostálgicos de suas terras e de seus países quanto quaisquer brasileiros que já viveram no Exterior.

Enquanto novo herói, porém, Antônio Menezes deverá amargar ainda muitas plateias brasileiras não tão lotadas quanto talvez se pudesse supor sua nacionalidade mas, acima de tudo, sua imensa qualidade. E não há dúvida de que o público é ainda pianolatra.

Este, aliás, o grande problema: a ignorância e, por via de consequência, o colonialismo cultural a que todos estamos submetidos de uma forma ou de outra. Os músicos brasileiros das nossas orquestras já se deram conta disso. Entre os mais jovens não é difícil ouvir o juízo de que fulano ou beltrano (seus colegas evidentemente), é “colonizado”. Por tal, existe uma gama de prejuízos; mas existe também a indiscutível identificação de uma realidade – dos professores das faculdades de música aos regentes de orquestra, quase todos pensam sempre no alvará do Exterior para se manifestar. Não estranha evidentemente que Antônio Menezes não seja até mesmo ele herói dos seus próprios colegas.

As mentes colonizadas são, em todo o caso, muito frequentes; muito mais do que possa supor a ideia de que o nosso melhor músico – pelo menos o mais perfeito – não tenha, afinal, tantos admiradores quanto se poderia supor. Começa pelo fato mesmo de que nossos compositores ou regentes quase não vão a concertos das orquestras brasileiras. Tenho amigos, professores de música, que jamais entram numa sala de concertos para ouvirem a Estadual ou a Municipal. Existem outros que deblateram contra o governo o tempo todo. Nunca os vi discutirem com os trabalhadores da música – os instrumentistas – a situação concreta em que todos estão.

Quando órgãos como a Secretaria de Cultura do Estado, como é o caso da nossa, investem em redundâncias, levando professores de “educação artística” (?) para ouvirem música de consumo em Campos de Jordão – quando isso poderia ser feito ligando-se o rádio aqui em São Paulo mesmo, –, os equívocos menores são as escolas superiores de música a discutirem teoria musical sem formarem um único instrumentista:

Antonio Menezes é um sinal dos tempos. Permito-me ao otimismo de considerar que, não obstante os erros e os equívocos, sem falar nas instituições de ensino de música que não fazem nada por ela, as coisas podem melhorar. Já não temos só grandes pianistas. Resta esperar, porém, que daqui por diante pianistas – os realmente grandes – disponham-se a tocar com Antonio Menezes. Acalento o sonho de ver um Nélson Freire ao lado deste grande músico. Grandes artistas não são excludentes – muito pelo contrário. Se a contrapartida de Antonio Menezes nas mazelas que todos conhecem parece uma força desigual, o projeto da grande arte pode ser maior. Não custa acreditar que com a existência de um dos maiores violoncelistas do mundo, entre nós, não devamos ter a ambição ode ver nossos jovens na trilha deste grande músico.

A propósito, e para terminar: escrevi que Menezes não fazia parte de uma família de músicos. Não sei de seus avós – mas seu pai e seus irmãos são musicistas. Fica a retificação.