Por Enio Squeff (publicado na “Folha de S. Paulo”, em 02 de agosto de 1983)
O governador Jair Soares, do Rio Grande do Sul, fez há pouco uma promessa solene: vai terminar as obras de restauração do Teatro São Pedro no próximo ano. É um compromisso, como se diz, “alvissareiro”. O São Pedro, em 1984, completará 126 anos de existência. São poucos os teatros brasileiros que ostentam esta idade e se o governador gaúcho conseguir que seu Estado sobreviva às vicissitudes das enchentes, o Brasil pós-64 talvez acrescente, a seu modestíssimo acervo de preservação histórica, um belo monumento.
Por seu passado, o São Pedro não difere muito de outros teatros de província: teve seus momentos de glória nas companhias de óperas que por vezes desviavam do Cólon, de Buenos Aires e do Sodre, de Montevidéu. Mas suas paredes carregam a espessura das construções sólidas, erguidas por escravos. Eram, eles, aliás, que ocupavam alguns corredores do teatro levando e trazendo urinóis com que as senhoras e senhoritas da época, se aliviavam em seus camarotes durante as récitas das óperas. São histórias pitorescas que não se acrescentam aos registros oficiais. Garantem alguns historiadores que, se éramos escravagistas, pelo menos tínhamos mais higiene entre nossos nobres. Em Versalhes, por exemplo, não existiam escravos com penicos; as senhoras e cavalheiros se desfaziam de seus líquidos e sólidos nos próprios desvãos e escadarias do Palácio. Enfim, na história do São Pedro, a escatologia ocupa um lugar secundaríssimo. Mas os prolegômenos de sua preservação, nem tanto.
Sei que por pouco não cedeu à especulação imobiliária. Salvou-o a imprensa e um grupo que hoje cuida da sua restauração e que há anos vem sendo dirigido pela diretora da Fundação do Teatro, Eva Sopher. Como São Paulo está contribuindo com corrimões de madeira feitos na Escola de Artes e Ofícios, da Tiradentes, sua história tem um pouco das contribuições do “Sul Maravilha” como um todo. Mas não deixa de ser um anacronismo perante a especulação imobiliária desenfreada, não apenas de Porto Alegre.
O contraste está atrás do próprio Teatro. No seu entorno foram construídos os mesmos edifícios com que um dia o Brasil será definido em seus últimos 20 anos: alguns possuem janelas comuns; mas outros exibem seus vidros fumês. São em tudo iguais aos que possuem os edifícios da Petrobrás, no Rio de Janeiro e o prédio do Banco Central em Brasília. Segundo arquitetos que conheço, como material de construção só têm uma finalidade: armazenarem o calor. Foram projetados pelos europeus e norte-americanos devido ao frio de seu inverno. Como Porto Alegre, Brasília, Rio e São Paulo tem verões tórridos, a indústria da construção civil beneficiou-se: todas as construções do tipo precisam de ar refrigerado. Como a eletricidade custa dinheiro, gastamos em energia, o que para todos os efeitos, nosso clima dispensaria.
O contraste com o São Pedro e outras construções é todo esse. No passado, na época em que teatros como o São Pedro (ou o nosso Municipal) eram construídos segundo necessidades básicas realistas, em que não havia a urgência de fazer um capitalismo milagreiro, conforme o sonho da “potência emergente”, a arquitetura colonial ia resolvendo os problemas a contento. Uma vez o arquiteto Luiz Saia chamou minha atenção para este fato; não acrescentou crítica alguma ao que o futuro estava fazendo (acho que não chegou a ver o que viria, pois faleceria algum tempo depois). Mas o São Pedro merece, de qualquer modo, ser visto e, quem sabe, assistido também pelos outros Estados: se não possui a história artística de outros teatros, é o testemunho de outros tempos, quando o Brasil era um país independente e tinha sua própria arquitetura. E se o governador gaúcho cumprir sua promessa, certamente acrescentará de exemplar, o que hoje nos sobra de inútil e dispendioso.