Por Enio Squeff (publicado na “Folha de S. Paulo”, em 29 de maio de 1983)
Há um certo consenso em que todo o crítico é um artista frustrado. É possível; conheço alguns que o são. Mas Schumann, Berlioz e Debussy, dentre muitos, fizeram crítica musical. Não parecem ter exercido a função por não se acharem bons compositores. Mesmo que se considere a hipótese, portanto, fica o fato de que nem para todo o mundo as coisas são incompatíveis. Na semana retrasada, por exemplo, a crítica Lea Vinecour Freitag (de “O Estado de S. Paulo”), deu um recital no Cultura Artística; a seguir, no mesmo espetáculo, o crítico Ronaldo Miranda (do “Jornal do Brasil”) apresentou-se tocando um concerto para piano, de sua autoria. Foram aplaudidos e ninguém deve ter-se lembrado de ligar uma coisa com outra. Mas não se pode ignorar os fatos.
Falo por experiência. Há tempos atrás ocorreu-me que poderia tocar com alguns amigos profissionais. Em tempo desisti do intento. Não penso acrescentar ao futuro mais uma má impressão que talvez meus textos possam causar a certas pessoas. Mas, ao saber do fato, uma jovem, que se diz crítica, achou por bem me desestimular: considerou o fato “uma falta de ética”. É uma besteira, mas não são poucos os que pensam assim e que repetem “ad nauseam” que se devem seguir as sociedades tecnológicas nisso de se ficar na divisão de trabalho. Não me refiro, evidentemente, ao tráfico de influências. O crítico que obtém concertos “por favor”, se for mau músico fica, em geral, numa única apresentação com a devida cobertura. Haverá outro crítico que, por honestidade, lhe dará o que os artistas não gostam de ouvir. Glórias musicais não se fazem por cachê. É conhecida a história da mulher de um crítico que sempre tocou graças às chantagens do marido. É um exemplo, dentre muitos, de que o nepotismo se exerce também na música. Mas não são personalidades do qual a história dirá que valeram muito.
Os críticos, porém, são necessários? A questão é perfunctória: a instituição da crítica, enquanto estudiosa de determinado assunto, parece ter nascido com o mercado. Vasari, crítico e artista da Renascença, foi também um avalista dos artistas sobre os quais escreveu. Não se pode dizer que não tenha cumprido o papel que o mercado e o mundo exigiram dele. Daí à relação estreita e exclusiva com o mercado vai uma distância que os colegas que comentam discos devem sentir a todo o momento. Também no mercado de discos não parece haver possibilidade de que os interesses subalternos (exclusivamente econômicos), se sobreponham à qualidade. Pelo menos perante o futuro.
Há, sem dúvida, os erros da crítica. Comentando o assunto, uma revista semanal fez há dias uma matéria a respeito. Não acrescentou muito: apontar erros nos críticos é o mesmo que tentar eliminar determinado compositor por uma obra menor. O que ninguém se lembra é que é sempre a crítica que refaz os erros dos críticos. Ao recuperar a música de J. S. Bach, mantida no esquecimento por muitos anos, Mendelssohn poderia não ter tido sucesso algum. No entanto, foi apoiado por críticos e musicólogos. No plano filosófico, o fato vale para toda a obra de arte: quem faz Beethoven são seus ouvintes. Não existe obra de arte sem apreciadores. Também não é o caso de se pensar que só o sucesso imediato avaliza uma obra de arte. Não vem sendo assim e não por culpa exclusiva dos críticos. Certa vez colocaram este problema aa Wilhem Furtwangler. Sua resposta foi a de que um crítico não podia fugir da opinião pública. Há exceções, mas a visão de Furtwangler estava correta.
A meu ver eles são tão válidos quanto os músicos que resolvem escrever. Não que uma coisa deva ser corolário da outra. Já defendi a ideia de que todo crítico deveria conhecer a música com a agilidade de um bom profissional. Hoje penso diferente: tive de admitir que quem aplaude são pessoas que não conhecem uma partitura e que se valesse o critério do especialista – e apenas o seu – os concertos deveriam ser dados em “petit comité,” e isso é inconcebível.
Em suma, o que quero dizer é que talvez não vivamos em compartimentos tão estanques quanto quer a sociedade de mercado. Na demonstração de que sabe fazer a música que critica, a colega de “O Estado”, Lea Vinecour Freitag, pareceu-me exagerar nos vibratos; seus tons médios são algo apagados. Mas sabe cantar e em alguns momentos mostrou que tem a dar no gênero a que se dedica. Quanto ao colega Ronaldo Miranda, diria que conhece seu ofício, não obstante seu apego à tradição. Não tenho condições de arriscar maiores palpites sobre uma obra de estreia, poderia aduzir, porém, que no tratamento que dá a orquestra, Ronaldo Miranda mostrou conhecê-la a fundo; e não é por ostentar algumas influências de Bartok que deixa de merecer elogios. Vivemos um momento de questionamento: o caminho do compositor Ronaldo Miranda, parece-me no mínimo, viável. Não é bem o caso da soprano e colega Vinecour Freitag. Como disse, defendo seu direito de cantar quando e onde quiser. Como seu colega (e amigo), porém, não posso deixar de considerar que no capítulo da crítica sua função de intérprete não se pode limitar ao repertório que apresentou. A canção brasileira tem um mundo nada desprezível atrás de si: não pode estacionar em algumas obras tonais ou nacionalistas. De um crítico se pode esperar que seja mau intérprete ou compositor medíocre. O que não se aceita é que, como intérprete, limite seu repertório. Aqui a questão vai além do artista: por ter de criticar tudo e não apenas o que mais gosta, cabe ao crítico que interpreta ser tão amplo quanto o que escreve. É o único momento em que o crítico deve ser o que dele se espera, ou seja, que não fique só na música para que a música do mundo compareça em sua arte; e que nunca seja tão amplo para que o que diga se situe sempre fora do problemas musical. Em outras palavras: não acho que os críticos sejam diferentes dos compositores e intérpretes que criticam. Mas por terem o direito de opinar, devem fazê-lo na amplidão da obra de arte, no aqui e no agora do seu mundo e do seu País. Quanto à estrita divisão de trabalho, os que nela acreditam que a pratiquem. Certamente, para eles e para a música é bem melhor assim.