Os intelectuais e suas relações com o Estado

Por Enio Squeff (publicado na “Folha de S. Paulo” em 8 de janeiro de 1983)

 

Um crítico musical, assinante mais ou menos assíduo de capas de discos, acaba de fazer uma série de ataques a alguns de seus colegas. Do que sobrou para mim, digo pouco: sou acusado de ser assessor cultural do sr. João Carlos Martins, secretário de Cultura, e continuar “mesmo assim” a assinar críticas, como se em algum momento tivesse usado um ou outro cargo para fins escusos. É uma besteira e não entro nessa. O crítico em questão tem-se distinguido por sua corajosa oposição a personalidades como Herbert Von Karajan e, se agora está atacando críticos, quando sempre se omitiu diante da política cultural, é porque os tempos já não o assustam. Ficou corajoso o moço.

Mas a questão da moralidade e da relação entre Estado e intelectuais interessa. Em anos mais negros, por exemplo, não foram poucos os intelectuais que trabalharam para o Estado; ouvi de alguns deles a defesa de que, com a sua ausência, as coisas seriam piores; e que, de qualquer maneira, se não assinaram laudos de tortura, muito menos mudaram uma vírgula do que pensavam. Seria o caso, dentre outros, de Roberto Farias, diretor do “Pra Frente Brasil”. Seu filme provocou polêmicas e censuras por retratar uma época que o cineasta conheceu como presidente da Embrafilme. Não creio que passará à história como coonestador da ditadura.

É um aspecto – mas há outros. Conheço críticos e intelectuais que colaboraram com o Estado naquilo que este lhes pedia – como a assinarem trabalhos para o Municipal e precisamente numa época em que não se falava em abertura democrática. Não são culpados pelos desmandos que culminaram com mortes, como a de Vladimir Herzog – mas poderiam ser arrolados com os “tempos e os costumes” da época. O problema, porém, tem outra dimensão: o Estado que aí está foi e é sustentado por uma estrutura que tem na chamada “iniciativa privada” seu maior fulcro: já ouvi de intelectuais que dizem não concordar com o Leviatã que, de fato, foi o Estado brasileiro nos últimos anos, que nunca colaborariam com ele. Mas, em suas respectivas funções, nunca fizeram uma única observação exigindo sequer a minoração da selvageria do capitalismo brasileiro e dos desmandos que culminaram agora na nossa ida ao FMI. Tinham lá suas razões, acho: perderiam seus empregos se o fizessem. Mas sua moralidade e seu radicalismo – quando existem – estacam precisamente no interesse de seus patrões. Que, aliás, muitos elogiam. (É o caso do crítico em questão que colabora com entidades musicais, elogia suas próprias contracapas e nunca apõe restrições aos concertos que a sociedade musical com a qual coopera traz ao Brasil.)

Ora, o que vale para os que trabalham para o Estado ou a iniciativa privada, numa dimensão, é exatamente o mesmo: no capítulo da ética, seria igualmente imoral se me esmerasse em loas à direção do jornal em que trabalho.

Quanto ao mais, é um problema de consciência, para dizer o óbvio: um intelectual são seus atos e suas ideias. Não me filiei ao PDS ao assumir compromissos com o sr. João Carlos Martins. Pelo que estou fazendo na Secretaria, conquistei o respeito dos que me interessam e que não se contam entre os esnobes (não me ocorre outra palavra para definir o aristocratismo com que se quer “delimitar” a ação do Estado ou de instituições como o Municipal). Por isso acho simplesmente risível a acusação – a mim e à colega Lea Vinecour Freitag, de “O Estado de S. Paulo”, de estarmos “mantendo” o PróÓpera do sr. Mário Chamie, secretário municipal de Cultura. Quisera eu ter o poder que me conferem: teria há muito implementado o Pró-Ópera naquilo que ele tem de muito bom e que redundou no fim da ditadura dos empresários.