Um guarda-chuva panorâmico

Por Enio Squeff (publicado na “Folha de S. Paulo” em 2 de janeiro de 1983)

Diz o poeta Mário Quintana num de seus aforismos que “o seguro morreu de guarda-chuva”. É uma boa ideia: tenho por vezo cultivar muitos pecados capitais – mas não o da usura. Por aí poderia justificar não apenas o esquecimento do que é incômodo. Mas de que provavelmente não me interessou e que eu deixei de lado, como todos os guarda-chuvas. É o que me ocorre ao tentar uma panorâmica do ano musical de 1982.

São Paulo não é Nova York e o problema para qualquer crítico que se proponha a levantar uma temporada daqui é que os espetáculos musicais importados normalmente se sobrepõem aos produzidos na cidade, ou no País. Ocorre-me, por exemplo, que se a Filarmônica de Nova York, que se apresentou este ano em São Paulo, não foi o que talvez se desejasse, jamais poderia deixar de constar de uma lista dentre os melhores. Defeitos, problemas graves não ouvi nenhum, mas da Orquestra dirigida pelo maestro Zubin Mehta se poderia desejar que alcançasse aquele algo mais que vem depois da perfeição e eu não sei sequer se a palavra “perfeito” poderia aplicar-se ao conjunto que o Mozarteum trouxe a São Paulo.

É um exemplo apenas: acho que se tivesse de fazer uma lista convencional do que de melhor foi feito em São Paulo, ainda que produzido fora daqui, teria de levantar categorias bem mais precisas. O conjunto de Marbourg também trazido pelo Mozarteum se presta à excelência para esta possível alternativa. É um grande grupo coral, deu um recital muito bom – mas eu não sei se a importância deste fato se dá mais pela constatação de que em São Paulo não existem bons corais (com tudo o que se possa entender como tal) ou se o bom estpetáculo deveria dispensar qualquer outra consideração.

Não há, portanto, porque ficar numa única conclusão. É evidente que a Orquestra de Câmara de Moscou trazida pela Cultura Artística agradou não apenas por estar acima de tudo o que existe no País. Mas por ser um conjunto exemplar e vice-versa. Pode-se dizer o mesmo sobre o violoncelista Antônio Menezes nosso primeiro prêmio Tchaikovski que foi a outra atração da Sociedade de Cultura Artística: pelo Troféu que trouxe ao Brasil quando amargávamos a derrota da Copa do Mundo, o nosso jovem em Moscou serviu de consolo para alguns poucos – mas certamente terá também mais significação para o futuro do que se mais uma vez mostrássemos que pelo menos de futebol somos de uma competência que não existe em outros campos. Não é preciso dizer, portanto, qual a importância da vitória e dos recitais de Antônio Menezes.

Sob este aspecto, aliás, o melhor talvez devesse ficar mesmo por conta do que foi produzido aqui, como a ópera “Wozzeck”: foi outra boa vitória brasileira. Pra quem duvidava, deixou claro que o trabalho também dá certo no Brasil. Mas “Wozzeck”, enquanto produção local, ficou rigorosamente pela metade: não foi gravado, sequer entra para a nossa história musical como documento típico do nosso século. Exageraria se dissesse que não valeu por isso, mas não creio extrapolar se deduzisse que muito do que foi investido acabou a fundo perdido exatamente por esta razão.

Em suma, são muitos os fatos a serem registrados: em 1982 a iniciativa privada parece ter acordado para a importância do mecenato – o que é bom, graças a isso a Osesp trabalhou com alguns bons solistas. Parece também que alguns instrumentistas brasileiros seguiram de perto o êxito de Antônio Menezes. É o que me vem a propósito de alguns concertos que ouvi promovidos pela Sul-América de Seguros (“Jovens Solitas”), e é o que me vem ainda sobre alguns bons recitais dados pelo Trio Brasileiro, Isaac Karabtchevski e a boa ideia que foi a conjugação de J. S. Bach e Chopin na interpretação dos pianistas Arthur Moreira Lima e João Carlos Martins. De 82 fica, enfim, que o Quarteto da Cidade de São Paulo deu alguns bons recitais e que, como nota realmente irreparável, morreram Jacques Klein, Sousa Lima e um instrumentista a quem sinceramente admirava, Edu da Gaita. Seria uma incongruência dizer que o resto foram “guarda-chuvas” que a gente esquece por não interessar. Mas talvez o fato maior seja mesmo o FMI perante o qual deverá cessar tudo o que a antiga musa canta. É um fato amusical mas que tem muito a ver com a música. Quem viver, verá.