Os músicos e a cultura

Por Enio Squeff (publicado na “Folha de S. Paulo”, em 7 de maio de 1983)

 

Em sua breve estada em São Paulo, o pianista português Sequeira Costa defendeu uma tese mais ou menos insólita. Ao falar sobre a formação de instrumentistas, afirmou que só a cultura geral tinha condições de dar ao músico uma estrutura ideal para chegar ao máximo. As exceções apenas confirmariam a regra. Quanto lhe lembrei o nome de alguns excelentes instrumentistas brasileiros que nunca chegaram a colocar Proust ou sequer Machado de Assis entre suas parcas leituras, recomendou-me, entre outros, uma olhadela nos currículos de Viana da Mota e do contemporâneo Alfred Brendel, ambos pianistas excepcionais e homens de cultura mais que razoável.

Não levei adiante o assunto. Como aluno de Viana da Mota, único discípulo de Liszt que Portugal projetou no mundo, o sr. Sequeira Costa representa uma corrente especialíssima nascida nas pegadas da música do futuro, defendida por Liszt e Wagner. Richard Wagner, principalmente, antes de ser músico, leu o suficiente para teorizar sobre vários assuntos até como especialista. Escreveu muito e privou da amizade de Nietzsche, Schopenhauer e Gobineau, homens que, de uma forma ou de outra, discutiram a cultura europeia no ápice de sua saturação por viverem dela e para ela. Sequeira Costa não deixa de ser um dos filhos tardios da ideia da Gesamtkunswerk (“obra de arte total”) wagneriana. Mahler foi isso a sua maneira, com sua paixão por Dostoiewsky. Mas, por isso, a questão talvez mereça um estudo à brasileira.

Nunca vi nenhum professor de música defender a sério a ideia de que a cultura geral poderia sequer ajudar a musicalidade de alguém. Dos músicos cultos, o único que se distinguiu foi, afinal, Mário de Andrade. Mas não foi menos músico do que poeta, romancista, ensaísta, etc., etc. Não é um caso típico: nesta categoria talvez devessem ser arrolados Villa-Lobos (que nunca foi um intelectual brilhante, muito antes pelo contrário), ou, quem sabe, os compositores contemporâneos, alguns dos quais escritores razoáveis, para bons (lembraria Willy Correa de Oliveira, Bruno Kiefer e Gilberto Mendes, para citar alguns). Mas, a sério, não conheço nenhum professor de instrumento que se preocupasse com cinema, literatura, artes plásticas, ou teatro, para apenas lembrar algumas matérias afins com a música. E me recordo que há algum tempo, ao mencionar um poeta português numa conversa com músicos, fui olhado com estranheza como se estivesse falando de cibernética para uma roda de índios xavantes. São observações ditadas pela experiência de quem sabe que a cultura não é bem o forte também dos que trabalham com outras atividades, embora exista mais possibilidade de que quem conheça teatro tenha alguns conhecimentos de ópera e de literatura; ou de artes plásticas (quase nunca de música de concerto). Mas é este exatamente o interesse do assunto.

Começa pelas escolas em si: ouvi há pouco a orquestra Jovem do Estado, que vem sendo dirigida pelo maestro Bernardo Federowsky. Fui injusto numa crônica ao dizer que ela estava em crise; se isso subentende trabalho e progresso, a orquestra vai bem. Está trabalhando duro no Teatro Mazzaropi. Mas só em parte é uma escola prática. Embora o Estado tenha uma sinfônica, não há nenhum músico profissional a acompanhar os elementos da orquestra de jovens que o próprio Estado sustenta. O ideal seria que a Sinfônica Juvenil fosse a mantenedora do conjunto profissional, com os instrumentistas profissionais dando assistência aos estudantes. É isso que dá sentido a uma orquestra de estudantes e (com a devida licença ao secretário de Cultura e ao maestro titular da Osesp) é também isso que dá sentido a uma orquestra profissional. Logo… Mas que isso tem a ver com o tema da cultura?

Com este algo mais que a erudição representa, realmente muito pouco. Mas como preocupação precípua de quem se insere no mundo da cultura com uma visão que vá além das cordas do violino, o bocal do trombone ou a palheta, do oboé, a falta da uma visão cultural mais ampla parece estar na matriz daquilo que se poderia denominar genericamente “alienação”. Pelos muitos implicados nesta falta de estrutura, a questão cultural não é evidentemente a única culpada. Um maestro que sabe quem é Proust ou que discute alguns heterônimos de Fernando Pessoa com a mesma proficiência com que debulha uma partitura de Schoenberg, não é bom administrador só por essas causas. Mas as artes se ajudam mutuamente: Não é por excesso de cultura que certos instrumentistas torcem o nariz diante de “Wozzeck”, de Alban Berg. E não é também por excesso dela que alguns professores defendem a ideia de que um bom livro não acrescenta nada ao estudo do estilo de uma determinada obra musical. Defender esta tese é uma enorme besteira. No entanto, é indiscutível a sua vigência entre nossos músicos. E não é por terem excesso de erudição que algumas autoridades parecem querer imitar aquele general nazista que gostava de repetir que toda a vez que ouvia falar em cultura punha a mão em seu revólver.

Verdade que cultura geral também não garante boas ideias. Hitler gostava de Wagner; Pinochet admira muito o gênero operístico. Não me admiraria se me dissessem que muitos torturadores latino-americanos até gostam de ler Dostoiewsky (embora ache difícil). Seja como for, e sem comparações absurdas, há evidentemente o outro lado da moeda. Ando pressentindo que no governo do Rio de Janeiro (que sinceramente admiro em alguns de seus aspectos) há gente que quer acabar com a ópera do Municipal por ser “elitista”. Por ter sido o monopólio de uma classe, a ópera estaria sendo acusada de aristocrática, burguesa e bobagens do gênero quando o que faz um espetáculo elitista não é o texto, mas o custo da bilheteria.

Enfim, a discussão vai longe. E o sr. Sequeira Costa não deixa de ter lá suas razões ao discutir o tema da cultura no aprendizado da música. Ela, de fato, parece ser fundamental. Mas isso por fazer parte do aqui e do agora da realidade específica de um País.