Sequeira no País sem heróis

Por Enio Squeff (publicado na “Folha de S. Paulo”, em 30 de abril de 1983)

 

SEQUEIRA COSTA – Pianista português. No anfiteatro de Congressos e Convenções da USP, hoje, às 16 horas, apresentando “Tema e Quatro Variações para piano e cordas”.

No Brasil já não existem “heróis na música de concerto.” Em seu tempo, Machado de Assis contava que tinha uma vez carregado com outros estudantes de sua juventude, o carro de Candiani, soprano famosa no Brasil da época. As divas e os divos eram idolatrados. Hoje já não é assim. Cometi esta semana o erro de dizer que o pianista português Sequeira Costa nunca estivera antes no Brasil. Não é verdade mas pela “barriga” só recebi uma única reclamação. Fosse outro o ambiente musical, quem sabe, teria sido esfolado vivo.
Ficam, evidentemente, as desculpas cabíveis. Mas é claro que devido à ausência de heróis e de admiradores mais ou menos fanáticos, de quando em vez, os críticos se beneficiam. Não é o que acontece com a chamada “comunidade musical” – incluindo-se aí músicos e públicos. Esta quase sempre sai prejudicada. Ouvi há pouco os “Mestres Cantores”, no Cultura Artística; é um belo conjunto. Os cantores Zuinglio Faustini, Wilson Marques, Lenice Prioli, Niza de Castro Tank e Wilson Marques não deixam de fazer jus à pretensão do nome – têm material para isso. Mas certamente, também, poderiam fazer melhor; só que por viverem no Brasil, tanto eles quanto más informações não despertam grandes paixões.
Do pianista português Sequeira Costa pode-se dizer que certamente não merecia a ignorância do crítico. Pelo que fez quinta-feira com a Sinfônica da USP, num espetáculo que será repetido hoje, às 16 horas, no Anfiteatro da Universidade, o sr. Sequeira Costa remete à tradição reivindicada por seu mestre, Vianna da Mota, que foi aluno de Liszt; se a tradição de Liszt equivale a uma técnica soberba, e a uma inteligência musical muito explícita nas suas proposições, o pianista português tem como reivindicá-la. Não recebeu da orquestra da USP o acompanhamento merecido na peça “Tema e Quatro Variações (4 temperamentos) para piano e cordas”, de Paul Hindemith. Mas a orquestra da USP tem altos e baixos na medida de alguns de seus programas. No de quinta-feira, ouviram-se “Variações sobre um tema de Frescobaldi” de Alexandre Tansmann, cuja composição realmente só mantém certo interesse pelo tema do outro; e incluiu ainda mais “10 variações” do brasileiro M. Homem de Mello sobre o tema “Coco do Aeroplano Jahu”, onde a expressão “variações” me pareceu, no mínimo, mero exercício de retórica.
Ora, tanto no espetáculo dos “Mestres Cantores” quanto no do pianista Sequeira Costa, os respectivos teatros estavam quase vazios. No espetáculo de canto, a soprano Niza de Castro Tank, na ária a “Rainha da Noite”, da “Flauta Mágica”, de Mozart, numa demonstração de profissionalismo sem precedentes, pediu desculpa por cantar meio tom abaixo uma nota aguda. Estivesse o teatro cheio, a cantora seria saudada não só por sua autenticidade, mas por seu virtuosismo: são poucos os cantores que, ao errarem uma nota, não desafinam.
A sra. Niza de Castro Tank consegue isso e poderia ter dispensado a autocrítica. Não o tiveram. Talvez estejam aí os sintomas dos problemas de um País que cultiva heróis errados e que tem na indiferença dos erros dos críticos apenas uma das manifestações de outras indiferenças bem mais graves e que dizem respeito a sua própria vida. Certamente, no tempo da Candiani era melhor.