A raiva

Por Jorge Arizio (publicado na “Folha de S. Paulo” em 24 de setembro de 1978)

 

Que é que impulsiona a obra de arte? Já presenciei muitas discussões sobre o assunto, nenhuma entretanto me convenceu mais do que a dinâmica da raiva. Se a raiva é o corolário do processo econômico – eis um dilema que deixo aos sociólogos resolverem. Quanto a mim, creio no incentivo da raiva. Mas ela existe como tal? Até certo ponto acho que sim. Li no prólogo do livro “Ortodoxia” de G. K. Chesterton – um dos inspiradors de J. L. Borges – que seu livro surgiu de uma discussão com Bernard Shaw. Os dois se encontraram na rua e imagino que, como bons ingleses devam ter se cumprimentado e conversado amigavelmente até que Bernard Shaw disse algo que Chesterton não gostou. Devia ser sobre a Igreja: Chesterton era católico e explicava em seu livro a razão disso. Mas daí em diante fico a imaginar o resto: Bernard Shaw om sua ironia, jogando na cara de Chesterton que ele era medieval, papista e que não passava de um papa-hóstia, enquanto Chesterton, louco para lhe dar um murro no nariz chamava-o de tudo que um inglês não muito educado poderia ser. Enfim, Chesterton vai para casa e escreve de raiva, “Ortodoxia”. E, no caso, é sincero: diz no prólogo de seu livro que fez aquilo por pura raiva. Mas se Chesterton foi sincero, muita outra gente não o foi. Parece-me, contudo, que é isto que explica muita coisa. Citei Borges e remeto-me ao escritor argentino.

Quem o vê hoje cego, não o  imagina protagonista de duelos fatais entre gaúchos e malandros portenhos. E por mais que me digam que Borges poderia ter presenciado algumas brigas célebres, acabo sempre no oposto: Borges me é um menininho metido a intelectual, louco de medo daquela malta que deveriam ser os portenhos e os gaúchos de sua infância. Um dia, de calças curtas, passa por um bando de garotos e um deles grita: “Che Borges, eres um maricón”.

Pronto, Borges vai para casa humilhadíssimo e começa a escrever seus contos onde, naturalmente, o que fica não é a sua valentia (Borges é inteligente demais para isso), mas a realidade de que ele é um apreciador privilegiado do que conta. Os garotos continuarão na rua contando vantagem e brigando na esperança de serem os gaúchos e os valentes que infestam os bairros pobres de Buenos Aires. Borges, não, de pura raiva, vai matando um a um os garotos e os valentes de que ouviu falar. Vingança exemplar, sem dúvida. Durante anos o menino que o chamou de “maricón” vai aparecer transvestido, sendo morto por Borges de mil e uma maneiras diferentes.

Mas a raiva não anima apenas escritores. Não posso imaginar que Michelangelo não tivesse em estado de raiva sagrada ao pintar a capela Sixtina. Não se considerava um pintor e foi obrigado a fazer o grande afresco por ordem do Papa Julio II. Ou pintava, ou… Como não podia vingar-se diretamente de Julio II que, além de Papa, usava a espada com maestria – atingiu a um secretário deste: pintou-o no inferno com todas as tintas que o inferno de Michelangelo tem. E foi assim que a raiva virou inferno – aliás, no fundo, uma raiva de si mesma. A raiva, entretanto, nem sempre se pinta a si e nem sempre dá certo.

Não basta receber uma fechada na rua, acenar para a genitora do dono do outro carro, chegar em casa com o olho roxo ou cobrir-se de vergonha ao ter de engolir o desaforo quando o desafeto, incrivelmente maior que a gente chega na janela do carro estacionado num farol e pergunta: “Que é que você disse mesmo, ô baixinho?” Quer dizer, não adianta nada chegar em casa gritar para a mulher “Olha, diz para as crianças que não me incomodem que eu hoje estou furioso e vou fazer uma obra de arte”. Isso definitivamente não adianta. É preciso ter um certo talento para a sublimação. Por exemplo: li que uma feminista depois de tentar encontrar inutilmente em Karl Marx o respaldo para algumas de suas teorias teve de se curvar à evidência de que o autor de “O Capital” não era, afinal, o que esperava.

Então, com raiva, pesquisou a vida de Marx e escreveu sua história: contando entre outras coisas que Marx edepianamente amava suas filhas, que fazia amor com a empregada, que tratava mal à esposa e que, enfim, era um porco chauvinista. Até aí tudo bem se a moça não levasse sua conclusão a uma sublimação desconcertante. Em outras palavras: Marx foi um porco chauvinista, logo o marxismo está errado. É o caso de nós outros, os mortais sem lá grande talento: a raiva justifica, mas nem sempre explica. No caso desta moça, quem explica no duro é Freud – mas que também era um chauvinista e coisa e tal.