Na cama, à procura do tempo perdido

Por Jorge Arizio (publicado na “Folha de S. Paulo” em 26 de junho de 1978)

 

Foi Rubem Braga, parece, quem comparou-se, certa vez, a Proust reivindicando pelo menos uma característica marcante do romancista francês: ele também escrevia, de vez em quando, na cama. Ficou aí a comparação e a história morreu, naturalmente. As variações eróticas em torno da cama tornaram o tema muito suspeito e isso, talvez, tenha arrefecido a inventiva do grande cronista. A cama, contudo, existe e não apenas na constatação coperniquiana de sua realidade física ou erótica: há um sem número de artistas que se valeram deste excepcional utensílio para suas atividades além e aquém do exercício da libido.

Marcelo Mastroiani, por exemplo, conhecido por suas façanhas amorosas, já confessou que costuma usar a cama para dormir; e acrescentou ser ardoroso e renitente devoto do pecado capital da luxúria, mas que não trocava seus devaneios nas paragens do eros, pela preguiça – um pecado que considerava infinitamente mais sedutor.

Afora essas tendências, entretanto, a cama não pode ser necessariamente o local para exercícios do pecado. Rubem Braga lembrou Proust e o grande escritor é, de fato, o exemplo clássico. Calcula-se que sua hipocondria condenou-o à cama muito antes que sua saúde o exigisse. E o “A la recherche du temps perdu” ficou sendo assim a utopia do além-cama – o além-mar em que o gênio deu largas à sua imaginação. Notem: Proust fez da cama seu último reduto – a tábua de salvação além da qual sua imaginação vagou, indo da mesa da cabeceira ao armário e deste ao espelho. A constatação de que existiria um espelho no quarto de Proust é fundamental: ele seria o complemento fundamental, a presença de seu alter-ego, a auto consciência do mundo da cama – único repouso do romancista depois dos vôos ilimitados de sua imaginação, quando o escritor se via pálido, o bigode em desalinho, as olheiras profundas e, naturalmente, a cara de cama.

A cama de Proust, porém, não teria sido mais imaginosa do que a do compositor Giacomo Rossini. Para o autor de “O Barbeiro de Sevilha” a cama foi uma recompensa. Durante os 15 anos em que dominou a Europa logo após o período trágido em que Napoleão tentou impor o continente as manufaturas francesas e em que a burguesia principiava a imitar os aristocratas – Rossini não poucas vezes foi surpreendido a compor na cama. Teriam saída da aparente mobilidade de uma cama, o irrequieto Fígaro, o ridículo Conde de Almaviva, a adorável Suzana e a sofredora Cenerentola. Rossini amealhou sucessos invertendo a imagem clássica do compositor romântico que, como se sabe, tossia sangue sobre as teclas brancas de um piano. E não apenas a cama agrava o grotesco: Rossini – que é exatamente o mesmo do filé – foi um glutão infatigável. Imagine-se o compositor comendo na cama.

Em comparação com a cama de Proust, a sua deveria ser um pouco o bufo de suas óperas. Os lençóis de Proust seriam rendados, bordados com amarantos, imaculadamente brancos de onde saíam as reflexões de um moribundo que se angustiava ante a possibilidade de uma mosca pousar no lençol e o fato de que sua amante pudesse ser possuída por um outro homem; enfim, seria uma cama proustiana. A de Rossini, não. Por mais respeito que merece o compositor, seus lençóis teriam manchinhas suspeitas de canelone ao sugo, leves pinceladas de fuzili e o cheirinho característico de cebola e pimentão arrostitti, mais vinho, mais ovos fritos e os pingos de tintas de suas partituras. Ou seja, e enfim também, uma cama à Rossini.

O tema da cama, pois, é sério. Levando-se em conta a infinidade de atividades que este utensílio polivalente apresenta – não estranha que Nelson tenha ditado o fim da esquadra inglesa, dando as suas derradeiras ordens para a famosa batalha de Trafalgar na cama, ou que Churchill a tivesse usado para redigir muitos de seus famosos discursos.

Com tudo isso, a história da cama talvez não fosse tão escabrosa quanto sugere a importância que ela assume nas biografias de Frinéia, Cleópatra – ou da abominável “Dama do Lotação” – que, por sinal, prescindiu muitas vezes dela, como se sabe. Resumir a história da cama à luxúria é, convenhamos, muita falta de imaginação. Proust que o diga e que o digam os admiradores de Rossini, ou mesmo o pessoal que vai jantar hoje à noite num restaurante – o bife à Rossini, quem diria, foi concebido, como grande parte da humanidade, também numa cama.